Entrevista com Alfredo Pereira Jr: um trajeto da Filosofia da Ciência à Metafisica

Leonardo Ferreira Almada, Professor do Instituto de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Uberlândia (IFILO-UFU), Uberlândia, MG, Minas Gerais.

Logo do periódico TransformaçãoEm comemoração aos seus 50 anos de atuação, a Trans/Form/Ação, periódico de filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), propôs a publicação de uma série de entrevistas, por meio da Chamada para publicação de entrevistas com distintas/os filósofas/os brasileiras/os, com o objetivo de destacar os pensadores e pensadoras consagrados no cenário filosófico nacional.

A iniciativa visa promover um importante diálogo sobre suas trajetórias pessoais e acadêmicas, suas pesquisas e teses, bem como suas visões de mundo, através de entrevistas conduzidas por outros pensadores de destaque dentro da linha de pesquisa de cada entrevistado.

É nesse contexto que surge a entrevista a seguir, apresentando o Prof. Dr. Alfredo Pereira Júnior, docente do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Doutorado e Mestrado) da mesma universidade. Trata-se de um recorte da publicação Entrevista de Alfredo Pereira Jr., cuja versão na íntegra pode ser encontrada no vol. 48, no. 1, 2024 da Trans/Form/Ação.

[LEONARDO FERREIRA ALMADA – LFA] Como você gostaria de iniciar nossa entrevista?

[ALFREDO PEREIRA JÚNIOR – APJ] Minha motivação para o fazer filosófico é existencial, ou seja, é um enfrentamento das questões que permeiam a existência humana. Este fazer naturalmente se direciona para uma investigação sistemática, que desemboca na Metafísica, em uma solução de continuidade, como busca dos princípios geradores da experiência humana. Nunca me interessei pela análise filosófica de tópicos isolados. Minha ambição, em quase 50 anos de trabalho com a Filosofia da Ciência, sempre foi a de construir um sistema, uma Ontologia Interdisciplinar, que por sua vez nos remete aos problemas da Metafísica.

[LFA] O que seria uma Ontologia Interdisciplinar?

[APJ] Esta Ontologia é uma teoria sobre o Ser da Realidade, a partir de suas manifestações em nossas vivências, incluindo aqui a experiência científica e tecnológica, a qual expressa paradigmaticamente o estágio evolutivo atual da humanidade. O Ser da Realidade pode ser abordado enquanto princípio gerador — o “Ser enquanto Ser” da Metafísica propriamente dita — e também como modos de existência que se atualizam nas vivências humanas, o que seria assunto da Ontologia. Entendo que mesmo havendo uma diferença entre Ser e os processos que se apresentam na nossa vivência pessoal, tudo o que se expressa necessariamente pertence ao Ser. Talvez minha maior motivação filosófica seja a de mostrar esta continuidade entre os processos da vida e o Ser, evitando o apelo a um Ser transcendente para explicar problemas da existência humana. Parte do apelo ao transcendente advém da própria ambigüidade da palavra “Ser”, que pode ser usada como verbo e como substantivo. Como verbo, pode ser aplicado a diversas categorias lógicas, como estudado por Aristóteles no Organon; como substantivo, já em Aristóteles, e na abordagem contemporânea dos sistemas dinâmicos, se refere tanto às “substâncias autossubsistentes” (os seres ou sistemas com que nos deparamos na experiência) e ao “Ser enquanto Ser”, que por sua vez é suscetível de duas interpretações: como princípio que se situa nos processos vivenciados, ou como princípio transcendente. Em uma Ontologia Interdisciplinar, recorre-se às ciências para identificar estas categorias, referidas aos sistemas auto-organizados, que compõem o processo evolutivo do Ser da Realidade. No caso de Aristóteles, ele mesmo trabalhou como cientista empírico, tomando as Formas como identificadoras das espécies biológicas e criando a área de estudos biológicos chamada Morfologia. Meu trabalho se insere nesta linha de investigação, que nega o valor da explicação por princípio(s) transcendente(s), e busca os princípios subjacentes aos seres ou sistemas presentes na experiência humana… O que existe são os sistemas autossubsistentes, caracterizados pelos princípios “Matéria” e “Forma”. O “Ser enquanto Ser”, ou o Abrangente, seria o repertório de Formas possíveis, consideradas em seu todo, no estado potencial. Os sistemas correspondem às possibilidades do Ser que se atualizam na experiência humana.

Alfredo Pereira Jr, o entrevistado, no British Museum, durante período de visita à Goldsmiths-Universidade de Londres, 2019

Imagem: arquivo do entrevistado

[LFA] Como a Ontologia Interdisciplinar se conjuga com a Metafísica strictu sensu?

[APJ] O grande tema da Metafísica, acredito, é o de mostrar como o mundo da vida, e as próprias pessoas que vivenciam este mundo, derivam daquele repertório finito e eterno do Princípio uno, gerador de toda a realidade. Em Hegel, esta é a função da dialética: mostrar como as Ideias limitadas interagem e superam as aparentes oposições, em um processo que culmina com a emergência da consciência humana e da filosofia, entendidas como uma reflexão do produto do processo (o Espírito) sobre os momentos que compõem este mesmo processo. Em Aristóteles, este processo evolutivo é concebido de modo mais simples, como passagem da potência para o ato, sem a necessidade de superar contradições, ou de se assumir uma tendência do processo rumo ao pleno autoconhecimento da Razão.

[LFA] Mas se o Ser da Realidade é uma coleção de Formas, então a Matéria não pertence ao Ser?

APJ: A Matéria se encontra no Ser, em estado potencial, como Forma Elementar da Matéria, conceito que explico em seguida. No Monismo de Triplo Aspecto (MTA), que elaborei com colegas, a Energia se trifurca em três aspectos, a Matéria (como atualidade, ou seja, na experiência corporal), a Forma dos seres (a qual, na experiência, ao ser transmitida no espaço, de um a outro substrato material, é chamada de “Informação”), e o Sentimento (como experiência temporal). O MTA é uma Teoria da Consciência, sustentando que os três aspectos são necessários e conjuntamente suficientes para a consciência. Na Metafísica do MTA, a Matéria é uma potência do Ser da Realidade, não como “matéria-prima” (matéria totalmente desprovida de forma), mas como uma das Formas Elementares que constituem o Ser. Para isso, é preciso considerar todo o processo evolutivo do Ser da Realidade; as Formas que compõem o Ser enquanto Ser são possibilidades a serem atualizadas por meio de combinações entre si. Defendo o Monismo Neutro, a hipótese de que o Ser da Realidade não seja Ideal nem Material, mas possua um estado primitivo neutro, isto é, indeterminado, que chamei de Energia com E maiúsculo. A indeterminação consiste na coexistência de todas as Formas Elementares possíveis, em estado potencial. À medida que determinadas combinações das Formas Elementares se atualizam, ocorre uma Evolução Cósmica. As Formas que se atualizam em determinado momento não esgotam as possibilidades do Ser, pois outras permanecem recessivas e podem vir a se atualizar em seguida.

Entrevistador e entrevistado com o Dr. Jonas Coelho na banca de defesa de dissertação de Johnny Marques de Jesus, na UNESP-Marília.

Imagem: arquivo do entrevistado

[LFA] Como seria então a relação entre a Ciência e a Metafísica no MTA?

[APJ] No plano da representação do Ser, a Metafísica seria reconstruída usando a ferramenta de Espaço de Estados, cujo uso remonta à interpretação da Segunda Lei da Termodinâmica por Boltzmann e à reconstrução da Mecânica Estatística feita por Paul e Tatiana Ehrenfest. O Ser da Realidade seria a totalidade das possibilidades de existência (ou seja, de diferentes atualizações). Ao invés dos átomos ou moléculas referidos por Boltzmann, temos as Formas Elementares, de modo semelhante à Teoria das Cordas, na Física. A coleção de todas as Formas Elementares compõe o Espaço de Estados do Ser da Realidade. Portanto, o Abrangente aristotélico seria agora entendido como um espaço de estados N-dimensional que contém todas as Formas Elementares, no qual o processo evolutivo do Ser da Realidade pode ser traçado, contendo não só as trajetórias de atualização efetivas, como também todas as combinações possíveis que não são atualizadas, mantendo-se em estado recessivo.

O processo evolutivo, tal como apreendido na experiência humana no planeta Terra, corresponde a uma trajetória complexa e não linear neste espaço, sendo gerado por meio da recombinação das possibilidades eternas (Formas Elementares)… Na ciência atual, usa-se a Regra de Bayes (ou seja, o conceito de probabilidade condicional) para descrever este tipo de situação, em que a probabilidade de um evento depende de determinadas condições, às quais também são atribuídos valores de probabilidade. Os processos mentais, na abordagem do influente grupo de Karl Friston, se constituem em uma dinâmica bayesiana, na qual se considera que a mente opera com probabilidades condicionais para construir o mundo fenomênico.

Assim como na Gramática Generativa de Chomsky, teríamos um “alfabeto” e respectivo “vocabulário” (ambos finitos) de Formas Elementares, que se combinam e recombinam para gerar os processos espaço-temporais. É preciso ressaltar que tais Formas Elementares são vivenciadas em composições que se formam no processo evolutivo, presentes no sentir consciente. Podem ser representadas formalmente, mas não se deve confundir a representação com a vivência. As vivências, no mundo fenomênico, são vivências de composições complexas, como as formas biológicas ou musicais. Por isso se fala tanto em sistemas complexos atualmente.

Para ler o artigo, acesse

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Referências

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ALMADA, F.L. Entrevista com Alfredo Pereira Jr: um trajeto da Filosofia da Ciência à Metafisica [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2025 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2025/02/10/entrevista-com-alfredo-pereira-jr-um-trajeto-da-filosofia-da-ciencia-a-metafisica/

 

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