Nomear é uma forma de dominar? Designações em disputa e discursos de resistência

Maria Helena Cruz Pistori, Editora executiva, Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, SP, Brasil.

Logo do periódico Bakhtiniana.“Nomear” é o foco do artigo Designações em disputa: das relações entre (de)colonialidade linguístico-discursiva, dignidade menstrual e práticas discursivas de resistência e reexistência (vol. 20, no. 2, 2025), publicado pelo periódico Bakhtiniana. Maria Carmen Aires Gomes e Alexandra Bittencourt de Carvalho, ambas da Universidade de Brasília (UnB) e participantes do Núcleo de Estudos da Linguagem e Sociedade (NELiS), subscrevem o texto.

É sabido que o ato de dar nome às coisas do mundo se constitui em uma atividade que atrai os estudiosos desde a Antiguidade. No entanto, ao debater e analisar designações em disputa no artigo, Gomes e Carvalho partem da constatação de que, mais do que nomear e referir, a escolha de determinados termos e/ou expressões pode ocultar e/ou revelar causas justas e injustas, além de contribuir para ativar práticas discursivas de (re)existência e de resistência.

Como exemplo disso, as pesquisadoras se debruçam sobre um debate ocorrido na mídia em torno da expressão “pessoas que menstruam”, utilizada ao se discutir um programa social do governo federal (Brasil, 2024), questionando em que medida ela responde de forma adequada a lutas empreendidas na sociedade por diferentes movimentos sociais.

A análise recai sobre dois textos midiáticos que ilustram aquilo que se tem chamado de “guerras de denominação”: O primeiro, da filósofa cis e negra, Djamila Ribeiro, publicado na Folha de S. Paulo, em 2022 — “Nós, mulheres, não somos apenas pessoas que menstruam”; e o segundo, de autoria das ativistas trans e brancas, Bruna Benevides e Yuna Vitória, publicado no site Terra, também em 2022, em resposta ao texto de Djamila Ribeiro — “Por que estamos usando o termo ‘pessoas que menstruam’?”.

Como o próprio título do artigo indica, os aspectos que darão o substrato teórico das análises serão os conceitos de (de)colonialidade linguístico-discursiva, a questão dos corpos em intersecção e as práticas discursivas de resistência e reexistência. Gomes e Carvalho convocam diferentes autores para apresentar e debater a questão da decolonialidade linguístico-discursiva, especialmente em torno da expressão que provocou o debate, assim justificando:

“A decolonização de saberes e poderes sobre a saúde menstrual, sem dúvida, está implicada na decolonialidade linguística. Tal articulação nos provoca a pensar sobre a necessidade de reavaliarmos os saberes-poderes sobre as línguas e as práticas da linguagem, já que a lógica epistemológica que sustenta a colonialidade tem invisibilizado, apagado e oprimido violentamente as relações entre sujeitos, línguas e culturas.”

O texto afirma, ainda, que a produção de conhecimentos está vinculada à dimensão geopolítica, situada e materializada em um lócus de enunciação; por isso, há a necessidade de produzir novas narrativas sobre a saúde menstrual, que ampliem a lógica binária que a vê apenas como “coisa de mulheres” e permita uma linguagem mais inclusiva para referenciar as pessoas que menstruam, decolonizando e historicizando a linguagem.

Imagem, gerada por Inteligência Artificial, de diversas mulheres sorrindo e segurando absorventes.

Imagem: gerada pela Inteligência Artificial ChatGPT

Subsidiando teoricamente o artigo, apresentam-se ainda importantes aspectos da Análise Discursivo-Crítica Interseccional (ADCI), que amplia a proposta da análise crítica do discurso (Fairclough, 2001 e 2003 e outros), com o propósito específico de “analisar práticas sociodiscursivas de resistência e reexistência” e tem como ponto de partida “a inclusão do corpo como um dos elementos da prática social”.

Isso significa que o aparato teórico-metodológico convocado, apresentado de forma competente e detalhada no artigo, mostra-se bastante conveniente para a análise dos textos em conflito. Nesse sentido, convém também destacar que, em trabalhos anteriores, listados nas referências do artigo, as autoras começaram a desenvolver os conceitos com os quais trabalharão na análise.

No item “Mulheres que menstruam ou pessoas que menstruam: denominações em disputa de saber-poder”, as autoras apresentam as práticas sociodiscursivas jornalísticas publicadas na Folha de S. Paulo e no Terra, mostram como estão histórica e politicamente inseridas no contexto brasileiro de 2022, destacando convergências entre os textos.

Ambos propõem temáticas comuns, como o combate à opressão, ao epistemicídio e ao linguicídio; além disso, foram escritos por pessoas — “corpos de agentes decoloniais” — que combatem “ações e práticas (re)produzidas e sustentadas pelo sistema mundo moderno-colonial e pelas relações de poder interseccionais de privilégio e opressão”. Isto é, as autoras mostram que ambos os textos se orientam para a justiça social.

O conflito entre os textos em análise se estabelece por meio de sua argumentação, cada um deles partindo de “sensibilidades analíticas e políticas interseccionais”. A análise aponta não apenas os usos linguístico-discursivos em perspectivas decoloniais, como as “posicionalidades dos corpos em intersecção das autoras” dos textos midiáticos. É isso que faz com que defendam formas diferentes de nomear.

Ainda assim, os textos criam saberes e poderes que, por meio de um ativismo linguístico-discursivo político-identitário, expressam formas de reexistir, resistir e enfrentar a colonialidade linguística. Na análise, pode-se verificar como as reivindicações de uma (re)existência a ser reconhecida expressa-se nos recursos linguísticos e semântico-discursivos que apontam para valores, sentimentos e saberes.

Enfim, o debate se insere numa ampla compreensão do que seja a linguagem inclusiva democrática. Sua leitura, pois, leva-nos a refletir não apenas sobre as questões relacionadas à vulnerabilidade e dignidade menstrual, mas sobretudo acerca dos dizeres de Antônio Bispo dos Santos — Nego Bispo (2019), citado no texto: “nomear é uma forma de dominar, pois sempre que nomeamos, estamos criando, transformando, controlando e dominando o outro”.

Para ler o artigo, acesse

GOMES, M.C.A. and CARVALHO, A.B. Designações em disputa: das relações entre (de)colonialidade linguístico-discursiva, dignidade menstrual e práticas discursivas de resistência e reexistência. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso [online]. 2025, vol. 20, no. 2, e67130p [viewed 10 June]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p67130. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/w3GmS7JZqXc9MftLYs7FgQs/

Referências

Cartilha – Programa Dignidade Menstrual – Um ciclo de respeito [online]. Gov.br. 2024 [viewed 10 June 2025]. Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/cartilhas/2024/dignidademenstrual/view

FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge, 2003

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001

Nós mulheres não somos apenas pessoas que menstruam [online]. Folha de São Paulo. 2022 [viewed 10 June 2025]. Available from: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2022/12/nos-mulheres-nao-somos-apenas-pessoas-que-menstruam.shtml

Por que estamos usando o termo “pessoas que menstruam”? [online]. Terra. 2022 [viewed 10 June 2025]. Available from: https://www.terra.com.br/nos/por-que-estamos-usando-o-termo-pessoas-que-menstruam,446cf826c9d13939745f377b66f78f29g1dkmjft.html

SANTOS, A.B. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília: UnB, 2019

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

PISTORI, M.H.C. Nomear é uma forma de dominar? Designações em disputa e discursos de resistência [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2025 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2025/06/10/nomear-e-uma-forma-de-dominar-designacoes-em-disputa-e-discursos-de-resistencia/

 

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