Ciência e miscigenação racial no início do século XX

Vanderlei Sebastião de Souza, Historiador e professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Guarapuava, PR, Brasil

hcsm_logoO artigo intitulado “Ciência e miscigenação racial no início do século XX: debates e controvérsias de Edgard Roquette-Pinto com a antropologia física norte-americana”, de Vanderlei Sebastião de Souza, em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 23, n. 3), analisa as discussões sobre miscigenação racial promovidas no campo da antropologia física nas primeiras décadas do século XX, com destaque para as interpretações científicas envolvendo a antropologia brasileira e norte-americana.

Partindo da análise da produção científica de Edgard Roquette-Pinto, antropólogo brasileiro ligado ao Museu Nacional entre 1906 e 1935, o texto trata da inserção deste autor no debate internacional sobre miscigenação racial, temática que tanto mobilizou cientistas, intelectuais e autoridades públicas de diferentes países do mundo. O texto enfatiza as leituras e interpretações que Roquette-Pinto realizou da antropologia física e das teorias raciais produzida nos Estados Unidos, sobretudo por figuras como Charles Davenport, Madison Grant, Lothrop Stoddar, Rüdiger Bilden e Franz Boas.

Apesar do estreito diálogo com a tradição intelectual brasileira, em especial de autores como Euclides da Cunha, Alberto Torres e Manoel Bomfim, o trabalho demonstra que a produção antropológica de Roquette-Pinto só ganha sentido quando se analisa a circulação internacional de ideias, conceitos e teorias antropológicas, sobretudo pela emergência da antropologia física, da genética e da eugenia nas primeiras décadas do século XX. Neste período, conforme demonstra o autor, as discussões sobre miscigenação racial ganharam destaque no cenário internacional devido especialmente às preocupações com os processos imigratórios, a formação das identidades nacionais, a eugenia das populações e o futuro das grandes nações no concerto internacional. Essas preocupações, segundo o autor, “não apenas possibilitou um crescente interesse pelos estudos em antropologia física, como também estimulou a realização de pesquisas e o debate sobre populações de diferentes regiões do mundo, em especial aquelas marcadas pela miscigenação racial”.

Partindo da análise de um amplo conjunto de fontes documentais, o trabalho destaca que apesar da leitura e do diálogo de Roquette-Pinto com autores comprometidos com o racismo científico, como foram os casos de Charles Davenport e Madison Grant, o antropólogo brasileiro acionou suas pesquisas justamente para refutar as teses da degeneração dos mestiços, ou mesmo da existência de hierarquias raciais biologicamente determinadas. O artigo explica que o próprio uso que Roquette-Pinto fazia da eugenia e da genética mendeliana, tão largamente empregadas pela antropologia norte-americana para condenar os “cruzamentos raciais”, era feito em sentido contrário, demonstrando que miscigenação produzia a combinação de fatores biológicos responsáveis por gerar indivíduos saudáveis. No caso do Brasil, conforme comenta o autor do artigo, os estudos antropológicos de Roquette-Pinto foram utilizados para demonstrar que os “problemas nacionais” não eram devidos à origem biológica ou racial de sua população, mas sim aos fatores políticos e sociais.

De outro lado, demonstra que embora Roquette-Pinto conhecesse a obra de Franz Boas, antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos e um dos maiores críticos do racismo científico, este não teria sido uma influencia importante no pensamento do antropólogo brasileiro. Conforme defende o autor do trabalho, ambos os autores construíram interpretações antirracistas por caminhos opostos. Enquanto o pensamento de Boas foi da antropologia física à cultural, opondo-se ao evolucionismo a partir de uma perspectiva culturalista, Roquette-Pinto jamais abandou as ciências biológicas e o próprio conceito de raça. No caso deste último, explica o autor do texto, a negação do racismo foi produzida no interior mesmo das ciências biológicas, implodindo os paradigmas deterministas de dentro deles.

Como conclusão, destaca que as apropriações antropológicas feitas por Roquette-Pinto devem ser lidas tanto como resultado de sua participação nas discussões científicas internacionais, quanto de sua militância intelectual e de sua atuação política em defesa da população mestiça brasileira. Sua leitura da antropologia norte-americana, de acordo com o autor do texto, foi “politicamente seletiva”, empregando as ideias que se adequavam às suas visões otimistas sobre o Brasil e refutando aquelas que as contradiziam. Neste sentido, a pesquisa demonstra que a antropologia de Roquette-Pinto deve ser vista como uma “estratégia anticolonial” por meio da qual o antropólogo alterou os sentidos das teorias científicas. Se até aquele momento as ciências biológicas eram vistas como instrumento de condenação de negros, indígenas e mestiços, em suas pesquisas antropológicas a ciência é transformada numa ferramenta de valorização do Brasil e dos brasileiros.

Para ler o artigo, acesse

SOUZA, V. S. Science and miscegenation in the early twentieth century: Edgard Roquette-Pinto’s debates and controversies with US physical anthropology. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2016, vol.23, n.3, pp.597-614. [viewed 11th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702016005000014. Available from: http://ref.scielo.org/bvfjd2

Link externo

História, Ciência e Saúde – Manguinhos – HCSM: www.scielo.br/hcsm

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SOUZA, V. S. Ciência e miscigenação racial no início do século XX [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2016 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/10/19/ciencia-e-miscigenacao-racial-no-inicio-do-seculo-xx/

 

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