Mayara Floss, médica de família e comunidade, pós-graduanda de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Tatiana Souza de Camargo, professora adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
Qual foi a estratégia de comunicação do Ministério da Saúde brasileiro durante o início da pandemia em relação ao “tratamento precoce”1? Esta foi a pergunta inicial do artigo Linha do tempo do “tratamento precoce” para covid-19 no Brasil: desinformação e comunicação do Ministério da Saúde que realizou a construção de uma linha do tempo visual de janeiro de 2020 até abril de 2021.
Esta linha do tempo utilizou as principais notícias veiculadas no website do Ministério da Saúde sobre o “tratamento precoce”, o que existia de estudos sobre os medicamentos relacionados a este “tratamento” e os dados das mortes e fatos relacionados à doença que aconteceram no Brasil.
Por conta do contexto de excesso de informações, narrativas, comunicações e incertezas, a temporalidade dos acontecimentos, mesmo que recentes, podem ser de difícil interpretação, o que criou espaço para desinformação.
Em 15 de fevereiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou sobre a gravidade da epidemia do novo coronavírus e enfatizou que as iniciativas relacionadas ao seu combate vinham acompanhadas por uma infodemia. Esta última responsável por misturar fatos, medo, especulação e boatos, os quais são amplificados e retransmitidos rapidamente pelas tecnologias da informação.
O “tratamento precoce” também chamado de “kit covid” foi uma combinação de medicações que incluíam, por exemplo, cloroquina/hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e mais outros medicamentos.
A primeira notícia do Ministério da Saúde sobre “tratamento precoce” foi publicada no dia 14 de maio de 20202 e a última, considerando o período analisado, no dia 11 de janeiro de 2021. Totalizou-se 56 notícias publicadas e analisadas neste período, 33 notícias foram incluídas na linha do tempo.
Na construção desta linha do tempo percebeu-se a insistência do Ministério da Saúde na promoção do “tratamento precoce” em seu website, mesmo quando os órgãos internacionais já haviam retirado as orientações para uso da hidroxicloroquina e outras medicações.
As notícias de novos protocolos e o clamor do tratamento precoce foram intensificados próximo aos marcos de mortes. No dia 18 de junho de 2020, às vésperas do Brasil chegar a cinquenta mil mortes pela doença, foi lançado o protocolo pelo Ministério da Saúde de “tratamento precoce” para crianças, adolescentes e gestantes. Já no dia 24 de agosto, 16 dias após a passagem do marco dos cem mil mortos no país, alguns médicos apresentaram uma carta defendendo o “tratamento precoce” e afirmando que se tratava de uma “forma de melhorar as chances de cura da doença” e de prevenir óbitos.
Destaca-se também que, dentro do período analisado, o mês de julho de 2020 teve o maior número de notícias publicadas no website do Ministério da Saúde. O mesmo mês também registrou o maior número de óbitos por covid-19, tanto dentro do recorte temporal do estudo e do ano de 2020 como um todo. Devemos lembrar que nesta época ainda não existia vacina para covid-19. Entre maio e junho de 2020, França e Estados Unidos já haviam retirado as autorizações de uso de medicações do “tratamento precoce”.
É importante refletirmos que, para fundamentar uma decisão clínica ou de saúde pública, não pode-se usar estudos de qualidade ruim. Foi propagado que “haviam estudos para o tratamento precoce”, mas é necessário compreender o grau de confiança da informação ou a força da evidência científica para saber se o estudo é ou não de qualidade.
A estratégia de comunicação adotada pelo Ministério da Saúde pode ser considerada um populismo médico, o qual se baseia em performances de crises de saúde pública que colocam “o povo” contra “o sistema”.
O populismo médico pode ser utilizado para dar uma aparência legítima a uma política negacionista baseada em premissas falsas. Líderes de extrema direita, como os presidentes das Filipinas, Brasil e dos Estados Unidos, utilizaram respostas similares em relação à pandemia: simplificação, dramatização das respostas, desqualificação da mídia e questionamento da ciência.
Mesmo com evidências científicas para a não recomendação do “tratamento precoce”, até o início de 2021, o Ministério da Saúde não atualizou sua política no manejo da pandemia de covid-19, tornando-se, assim, um veículo de desinformação.
Através da análise da linha do tempo e da comunicação, demonstrou-se que, mais do que uma “negação da ciência”, o Ministério da Saúde promoveu uma distorção intencional para legitimar uma determinada verdade. Tal estratégia pode ter levado ao enfraquecimento da quarentena e à não adoção de medidas sanitárias, fatores que estão relacionados ao aumento de mortes. Assim, podemos dizer que a ação do Ministério da Saúde inseriu-se na esfera de uma política da morte, uma necropolítica.
1. Por não existir evidência científica que respalde o termo “tratamento precoce”, optou-se por utilizá-lo entre aspas.
Para ler o artigo, acesse
FLOSS, M, et al. Linha do tempo do “tratamento precoce” para Covid-19 no Brasil: desinformação e comunicação do Ministério da Saúde. Interface (Botucatu) [online]. 2023, vol. 27, e210693 [viewed 10 March 2023]. https://doi.org/10.1590/interface.210693. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/Gxw3ZdSCJYDr4RjPtXG4w5z/
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