Carlos Gontijo Rosa, Professor da Universidade Federal do Acre, campus Floresta, Cruzeiro do Sul, Acre, Brasil.
Bruna dos Santos Correia, mestranda em Linguagens e Representações na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, traz, no artigo Exu-feminina: sentido e erotismo em Maria Padilha de Bixarte (Bakhtiniana, vol. 19, n.º 2), uma perspectiva de análise outra sobre as representações da figura Maria Padilha na cultura brasileira e na letra da música de Bixarte. Além de propor novos caminhos metodológicos de leitura da cultura de religiões de matriz afro-brasileira, o artigo leva seu leitor a uma maior consciência do quanto suas construções simbólicas são afetadas por traços hegemônicos da cultura brasileira.
Já no início de seu artigo, a autora é contundente no seu posicionamento ideológico, que rejeita a saída fácil da interpretação calcada em princípios morais hegemônicos na sociedade brasileira – e, por que não dizer, ocidental: “há um imaginário operado pelas ideologias machistas e cristãs, que ditam quais são as condições moralmente aceitas sobre o sexo e sobre o erotismo para o corpo feminino”.
Resgatando a origem da palavra “pombagira”, tem-se a expressão Npambu Njila, cuja tradução seria algo como “entre caminhos” ou “encruzilhada”. É exatamente na encruzilhada semântica dos sentidos não apenas da exu-feminina, mas de toda uma cultura marginal, de onde a autora se propõe a empreender a análise. Neste sentido, não é uma análise fácil, porque mesmo os indivíduos criados dentro dos preceitos das religiões de matriz africana são impregnados culturalmente pelos sentidos cristãos formadores da sociedade brasileira.
Para explicar e construir os sentidos de Maria Padilha, antes mesmo de ingressar na leitura da música de Bixarte, é necessário evocar os sentidos e as contradições que seu nome e sua postura perante o mundo – enquanto entidade mito-poética – deflagram em sua contraposição (ocasional ou construída historicamente?) com a mitologia e com a moral cristã.
Na arena discursiva que se instaura, correntemente se vê que “a significação circulante é baseada em saberes de sujeitos não candomblecistas”, como ainda audaciosamente afirma Correia. O que a autora faz, portanto, é o que preconiza Mignolo no seu já clássico texto “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política” (2008), originalmente publicado em 2007. Entretanto, mais do que construir uma identidade que “desobedeça” a epistemologia vigente, o que Correia faz é mais generoso e mais inclusivo, pois ela conduz pela mão o leitor interessado em conhecer mais sobre as exus-femininas e sobre a cultura candomblecista e umbandista, mas que se encontra mergulhado até o pescoço no pensamento hegemônico cristão.
Já Bixarte e sua música aparecem como elementos complexificadores das relações entre uma certa ancestralidade e a figura completamente contemporânea da artista nordestina, negra e trans – características ressaltadas por Correia na descrição da artista. Tais aspectos, a meu ver, contrastam com a característica dual dos exus masculino e feminino – que, se não seguem ferrenhamente uma moralidade cristã, tampouco deixam de espelhar os estereótipos de determinados papéis masculinos e femininos na sociedade, como bem apresentado pela autora.
Embora esta tensão não seja destacada no texto, que tem um espaço limitado e, evidentemente, não pode abarcar todos os aspectos de tão complexas relações, a relação entre a artista e a religiosidade me suscita o jovem dramaturgo moçambicano Venâncio Calisto e sua peça Desmascarado, de 2018.
Na peça, diferentemente do que se vê na literatura africana de língua portuguesa do final do século XX, são colocadas em xeque as atitudes machistas do protagonista, que justifica suas ações através de questões de ancestralidade (representadas, na peça, pela “voz do avô” que eclode da boca do personagem, supostamente de maneira involuntária). Calisto, portanto, não mais vai exaltar a ancestralidade moçambicana como forma de resistência à colonização portuguesa e identidade perante o mundo, mas vai expor que também ela não cabe no mundo contemporâneo sem os devidos “ajustes”. Bixarte, destacada por Correia em sua análise, não é a representação de uma exu-feminina ancestral, mas uma atualização da ancestralidade religiosa de matriz africana.
Portanto, mais do que acrescentar à discussão, vejo como importante ressaltar a opção de caminho discursivo tomada por Correia – a generosidade da divulgação científica, sem a condescendência da linguagem fácil e do lugar-comum. Problematizar interpretações automáticas de sentidos presentes no mundo faz parte da construção de uma sociedade mais plural e, por conseguinte, polissêmica.
Referências
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF [online]. 2008, no. 34, pp. 287-324 [viewed 14 June 2024]. Available from: http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf
CALISTO, Venâncio. (Des)mascarado. Peça de teatro. Manuscrito. 2018.
Para ler o artigo, acesse
CORREIA, B.S. Exu-feminina: sentido e erotismo em Maria Padilha de Bixarte. Bakhtiniana [online]. 2024, vol. 19, no. 2, e62737p [viewed 14 June 2024]. http://doi.org/10.1590/2176-4573p62737. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/XFLVfkys3K5LHjGL7qzbXMG/
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