Maria Helena Cruz Pistori, Editora executiva, Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, SP, Brasil.
O artigo (Po)éticas sociais e subjetivas afro-brasileiras: ensinamentos dos povos negros e indígenas, publicado na Bakhtiniana (vol. 20, no. 3, 2025), assinado por Jean Vitor Alves Fontes e Beatriz Akemi Takeiti, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é um texto questionador, profundo e propositivo, que aponta possíveis ganhos sociais — teóricos e práticos — que adviriam da adoção dos ensinamentos pedagógicos e sociológicos presentes nos orikis e mitos dos orixás e nas perspectivas de alguns pensadores indígenas. Seu mote pode ser entrevisto no modo polêmico como os autores o finalizam: “Sigamos ‘enegrecendo’ e ‘indigenizando’ modos de se contracolonizar.”
Trata-se de um dos 24 textos do número temático voltado à “Literatura de ancestralidade negra: encruzilhadas diaspóricas”, cujos editores ad hoc foram Elizabeth Cardoso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Félix Ayoh’Omidire da Universidade Obafemi Awolowo (Ile-Ife, Nigéria). Sobre a literatura de ancestralidade negra, ambos afirmam, no Editorial:
… envolta no tempo espiralar que caracteriza a cronologia étnica africana e afrodiaspórica, essa produção literária desafia categorias estabelecidas, propõe novos olhares críticos e poéticos, além de ressignificar epistemologias, evidenciando a centralidade da ancestralidade como forma de resistência, afirmação identitária e estratégia de enfrentamento político.
O artigo de Fontes e Takeiti, assim como os demais do número, inserem-se nesse campo de investigação recente, mas fundamental: ao iluminar manifestações culturais e artísticas até pouco tempo restritas a grupos discriminados, levam o leitor à compreensão de dinâmicas históricas, identitárias e discursivas que as constituem e as envolvem. Mais do que isso, essas dinâmicas também nos constituem como nação.
Assim, se os artigos do número percorrem de Machado de Assis a Conceição Evaristo, passando por Lima Barreto, Aline Mota, orikis, mitos e orixás, entre outros, todos contribuem, de alguma forma, ao objetivo proposto por Fontes e Takeiti: “romper com a colonialidade, promovendo a invenção de novas formas de se pensar a sociedade e sua organização sociopolítica”.
Os autores iniciam seu texto refletindo sobre os ensinamentos dos povos negros e indígenas no Brasil, recorrendo ao conceito de “colonialidade de poder”, do pensador peruano Aníbal Quijano (2002), e correlacionando-o ao eurocentrismo dominante na cultura brasileira, isto é, à tentativa de imposição de uma cultura branca ocidental como cultura e identidade nacionais.
Em contraposição a esses conceitos, Fontes e Takeiti invocam o pensamento de Antônio Bispo dos Santos (2019), reconhecendo que é a partir de religiosidades e mitos que as populações constroem suas visões de mundo, modos de vida e organização social. O artigo apresenta, então, tanto as cosmovisões negras a partir dos mitos iorubás afro-brasileiros e dos orikis dos orixás, como o pensamento de líderes indígenas dos povos krenak e yanomami.
Autores como Antônio Risério (1996) e Naiara Paula Eugênio (2014) são lembrados para a compreensão dos orikis e dos mitos, pois é a partir deles que Fontes e Takeiti construirão “perspectivas contra-hegemônicas de se olhar, relacionar e construir a sociedade, tendo como pilar dessa discussão as questões da coletividade, da relação com a natureza, da transgressão e da ordem, do duplo e outras possibilidades de relações e representações de gênero”.
O texto mostra o papel da coletividade na compreensão social/ancestral da cultura iorubá e como os mitos e símbolos a reforçam eticamente. São trazidos orikis da cosmologia iorubá que exemplificam como o objetivo coletivo se alcança; como a tomada de decisões não considera apenas o eu, mas o nós; como o acúmulo de riquezas é visto como um desequilíbrio social; como a vida é regida pela energia de axé… Mostra ainda como, para o pensamento iorubá e os de líderes indígenas dos povos krenak e yanomami, é possível uma outra relação humano-natureza, que não parte da concepção ocidental da superioridade do humano sobre a natureza.
Importante ainda é a apresentação da relação entre transgressão e ordem, intimamente ligadas na cultura iorubá, que as tomam como princípios complementares e necessários: “no imaginário desses povos, a transgressão e a ordem não são opostas, elas estão associadas e caminham juntas, promovendo a transformação social”, afirmam os autores. E, finalmente, tratam do poder do duplo e outras perspectivas na relação masculino-feminino. O texto apresenta, sempre por meio de orikis e mitos, o “masculino” e o “feminino” numa relação que organiza socialmente os modos de vida complexos que
… destoam dos enquadramentos e limitações presentes nas culturas ocidentais, marcadas pelo heteropatriarcado e pelo machismo, promovendo relações de poder baseadas no gênero e nas sexualidades. Esta figuração se mostra para além da compreensão ocidentalizada do lugar da mulher, das relações entre natureza e sociedade que não aceitam enquadramentos, performando estilos e modos de ser, viver e se apresentar aos outros, o que se faz no cotidiano.
Enfim, Fontes e Takeiti nos apresentam aspectos importantes da poética iorubá para, a partir deles, fazer o leitor refletir sobre modos plurais e concretos de pensar a sociedade, a política, a cultura e a própria organização social hegemônica, herdadas das culturas brancas-eurocêntricas capitalistas e monológicas, produtoras da desigualdade. A leitura do artigo, com certeza, suscita muita reflexão!
Para ler os artigos, acesse
CARDOSO, E. AYOH’OMIDIRE, F. Literatura de ancestralidade negra: encruzilhadas diaspóricas. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2025, vol. 20, no. 3, e72489p, ISSN: 2176-4573 [viewed 26 September 2025]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p72489. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/Cb5djZhMvkkqjrJFBX45NLc
FONTES, J.V.A. and TAKEITI, B.A. (Po)éticas sociais e subjetivas afro-brasileiras: ensinamentos dos povos negros e indígenas. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2025, vol. 20, no. 3, e66433p, ISSN: 2176-4573 [viewed 26 September 2025]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p66433. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/rnjWBRnV3ZXHBcJG3Gdg4gG
Referências
EUGENIO, N.P. A face guerreira das iabás Obá, Euá e Oiá: articulação entre mito e representação. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014 [viewed 26 September 2025]. Available from: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/19365
QUIJANO, A. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos [online]. 2002, vol. 17, no. 37, pp. 1–28 [viewed 26 September 2025]. https://doi.org/10.36311/0102-5864.17.v0n37.2192. Available from: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/2192
RISÉRIO, A. Oriki Orixá (1. ed). São Paulo: Perspectiva, 1996.
SANTOS, A.B. Colonização, Quilombos: modos e significações (2. ed). Brasília: AYÔ, 2019.
Links externos
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso – BAK
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso – Redes sociais: Instagram | Facebook
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Últimos comentários