Leonardo C. Bandarra, mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, e membro da equipe editorial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
Tema patente nas relações internacionais contemporâneas, o combate ao crime organizado transnacional é assunto o qual muito afeta o cotidiano dos cidadãos dos países americanos, por onde se alastraram diversas redes de criminosos envolvidos, por exemplo, com o narcotráfico. É de amplo interesse dos diferentes países da região que o crime organizado transnacional seja extirpado de forma eficiente, porquanto dele resultam diversas mazelas econômicas e sociais, como o aumento da violência urbana e o enfraquecimento do poder estatal.
Nesse contexto, faz-se relevante destacar o papel dos Estados Unidos no esforço de conter o avanço desse tipo de organização criminosa. Em especial durante o governo de Bill Clinton, desenvolveu o governo norte-americano abordagem consciente de caracterização do crime organizado como ameaça global relevante à segurança nacional. Isso implicou fortalecimento de medidas coercitivas de combate crime organizado tanto interna quanto externamente, porquanto esse se tornara ameaça ao próprio sistema capitalista mundial.
Sobre esse contexto, em especial no que concerne ao caso americano, no artigo “Os Estados Unidos e a Ameaça do Crime Transnacional nos anos 1990”, recentemente publicado na Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Paulo Pereira, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, faz análise minuciosa das estruturas americanas desenvolvidas durante a década de 1990 com o objetivo de combater ao crime organizado transnacional. Sobre esse tema e sobre sua estratégia de investigação, o autor concedeu entrevista a Leonardo C. Bandarra, membro da equipe editorial da RBPI.
1. Em seu artigo, o senhor estuda as instituições desenvolvidas nos Estados Unidos para o combate ao crime organizado transnacional durante a década de 1990, em especial durante o governo Clinton. Foi nesse período que o crime organizado passou a ser oficialmente tratado por Washington como ameaça internacional, não apenas local. Qual foram as principais implicações do pensamento então desenvolvido relativo ao combate ao crime organizado transnacional no que concerne à estratégia americana de combate a essa atividade?
A principal implicação deste pensamento, que passou a avaliar o crime organizado transnacional como uma ameaça à segurança nacional e internacional dos Estados Unidos, diz respeito aos métodos de combate que passaram a ser empregados. Há várias maneiras de se lidar com o crime, ou seja, com práticas que afrontam bens considerados fundamentais às sociedades. Elas podem ser mais ou menos violentas. Elas podem restringir mais ou menos direitos. Elas podem, inclusive, propor a reavaliação de tais práticas, eventualmente descriminalizando-as. No caso em questão, os Estados Unidos escolheram a via da repressão e da violência para tratar o tema da criminalidade que atravessava fronteiras, inserindo-o em um histórico mais amplo de tratamento da criminalidade doméstica no país, pautado no encarceramento em massa, na restrição de direitos e na noção de um “direito penal do inimigo”, que mais tarde viria a ganhar formulação jurídica com a “guerra” contra o terrorismo. Internacionalmente, há pelo menos, três importantes dinâmicas que advieram desta nova maneira de se pensar a criminalidade organizada transnacional. A primeira delas diz respeito à internacionalização dos mecanismos e práticas de aplicação da Lei norte-americanas. Expressão disso foi o papel que as agências de repressão ao crime do país, tais como a DEA e o FBI, passaram a ter em outros países, formatando diversas orientações de combate a este tipo de atividades ilícitas. A segunda dinâmica diz respeito às imbricações entre as funções e prerrogativas das forças militares e policiais. Ao tornar o crime um tema de segurança nacional e internacional, os Estados Unidos estimularam a militarização das forças policiais, bem como a policização dos militares, algo seguido por diversos países da América Latina, tais como a Colômbia, o México e o Brasil. Fruto deste processo, mas também um dos seus estímulos foi o esforço da ONU para diminuir a importância das especificidades regionais destas práticas em prol da homogeneização das categorias relacionadas a esta criminalidade transfronteiriça, uma perspectiva cristalizada em 2000 pela Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e seus protocolos adicionais.
2. Em sua opinião, quais foram as principais mudanças ocorridas no pensamento norte-americano quanto ao tema nas últimas duas décadas, em especial no governo de Barack Obama?
Houve poucas alterações no tratamento da temática até o presente momento. De fato, avalio que o que ocorreu nas últimas duas décadas foi um aprofundamento dos processos que se iniciaram na década de 1990. É possível identificar, no entanto, um importante impulso às práticas de combate ao crime organizado transnacional citados na resposta anterior, a partir de 2001. Os ataques terroristas aos Estados Unidos geraram a oportunidade para a ampliação do poder das agências de aplicação da Lei do país para níveis desconhecidos até então. O combate à criminalidade transfronteiriça se fortaleceu na esteira do combate ao terror e, em certos aspectos, até mesmo os fundiu. A ideia de que o terrorismo se beneficiava e tinha suporte das práticas criminosas de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, contrabando de pessoas, pirataria e etc., ganhou adeptos na acadêmica e entre decisores políticos. Neste sentido, ao invés de falar em mudanças das concepções gestadas na década de 1990 é mais adequado falar em fortalecimento e aprofundamento.
3. Quais foram os impactos, para o Brasil, da política americana de combate ao crime organizado transnacional, desenvolvida a partir dos anos 1990?
Primeiramente, é importante ter em conta que o Brasil é um país com importantes dinâmicas de criminalidade transfronteiriça, especialmente com a Bolívia e o Paraguai. A Bolívia é o terceiro maior produtor mundial de cocaína, o Paraguai é um importante país de trânsito para as drogas direcionadas ao Brasil, além de prover produtos falsificados ou contrabandeados para o seu entorno. O Brasil, por sua vez, cumpre um papel de destaque nesta tríade por ser o país mais importante da região em termos econômicos e políticos, o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, bem como um importante país de trânsito para drogas rumo à África Ocidental ou diretamente para a Europa. Para lidar com essas temáticas, o país tem seguido, em grande parte, a concepção das Nações Unidas sobre o combate à criminalidade organizada transnacional, cristalizada na convenção de 2000, à qual me referi anteriormente. Além de ser signatário e ter ratificado tal convenção, o país já deu outros passos, tais como a tipificação penal do crime organizado transnacional na sua legislação penal. O texto da Lei n. 12.850 de 2013 é uma cópia fiel da convenção e não evidencia qualquer atenção ao contexto nacional do Brasil ou ao contexto regional sul-americano.
No que se refere aos impactos mais diretos da atuação norte-americana no combate ao crime organizado transnacional, desde os anos 1990, é possível destacar o crescente envolvimento da Drug Enforcement Administration (DEA), da Central Intelligence Agency (CIA) e do Federal Bureau of Investigation (FBI) no país, inclusive por meio de financiamentos obscuros à Polícia Federal, como foi documentado há alguns anos em reportagens do jornalista Bob Fernandes. Mas o Brasil não foi exceção neste tipo de atuação. Pelo contrário. Diversos países centro e sul-americanos receberam dinheiro da DEA e muitas das suas forças policiais e militares foram treinadas pelos norte-americanos para o combate a diversas formas de criminalidade transfronteiriça, dentre as quais se destaca inegavelmente o tráfico de drogas. Durante a primeira década do século XXI o Brasil seguiu de perto o Plano Colômbia, uma política do país vizinho com expressivos aportes financeiros norte-americanos (entre 2000 e 2008 foram quase US$ 5 bilhões) para a repressão à produção de cocaína, por um lado, e para o combate à guerrilha Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), por outro. A maior preocupação brasileira era com a possibilidade do conflito se alastrar para a Amazônia brasileira, bem como o cultivo da folha de coca. Há que se ter em conta, no entanto, que, apesar do incômodo com a presença dos Estados Unidos no conflito doméstico de um país com o qual faz fronteira, o Brasil seguiu atuando com base em um modelo parecido com o norte-americano, baseado em políticas essencialmente repressivas, pautadas no encarceramento e na ampliação da criminalização de certas práticas sociais.
4. Em âmbito internacional, desenvolveram-se diversas abordagens de combate ao crime transnacional, desde tratados internacionais, como aqueles relacionados a cooperação jurídica internacional, até acordos bilaterais de cooperação policial. Nesse sentido, pergunto-lhe: qual seria, em sua opinião, a forma mais eficiente de combate ao crime organizado transfronteiriço?
O crime organizado transnacional não é um, mas vários, bem como seus atores e dinâmicas. As práticas ilícitas que atravessam fronteiras variam no tempo e no espaço. Algo que foi considerado um crime pode deixar de sê-lo, dependendo de circunstâncias políticas, econômicas ou sociais. O século XX, no entanto, foi marcado por criminalizações de variados tipos de atividades, desde o consumo de drogas até a poluição do meio ambiente. Neste sentido, a primeira e mais importante política de combate à criminalidade, a meu ver, é a reflexão sobre quais são as práticas que merecem a qualificação de crime, ou seja, que são tão importantes para a ordem social que merecem as sanções mais incisivas e repressivas por parte do Estado. É possível que possamos rever algumas dessas proibições e achar outras formas de controla-las que não a lógica penal. Atualmente, a produção e o comércio de drogas ilícitas é o melhor exemplo desta necessidade. Propostas alternativas de tratamento deste tema têm ganhado expressão internacional, tais como no Uruguai, em entes federativos dos Estados Unidos e em variados países europeus.
Além deste aspecto, é fundamental que os países invistam em políticas preventivas ao invés de repressivas, que hoje consomem a maior parte dos recursos públicos destinados ao controle e combate às atividades ilícitas transnacionais. Propostas alterativas à privação de liberdade são fundamentais, algo evidenciado pelos efeitos sociais deletérios gerados pelo super-encarceramento que tem ocorrido em diversos países, tais como nos Estados Unidos e também no Brasil. No entanto, mais do que uma mudança de mentalidade, esta perspectiva demanda um embate político, um embate de interesses, dado que qualquer regime de proibição gera o crescimento de estruturas estatais e privadas que se beneficiam do combate às práticas ilegais, obtendo recursos financeiros, humanos e econômicos. Neste sentido, há aqui uma dinâmica complexa que não se encerra somente com esclarecimento ou boa vontade.
Para além destes aspectos, é inegável que determinadas práticas ilícitas transnacionais precisam ser reprimidas, tais como o tráfico de armas, cujas consequências individuais e coletivas de grandes proporções são nefastas. Nestes e em outros casos é fundamental um processo de cooperação internacional para a construção de mecanismos transnacionais de monitoramento das atividades ilícitas que atravessam as fronteiras, mas também de controle das próprias agências de aplicação da Lei dos diferentes países, com o sentido de promover transparência das operações de campo, respeito aos direitos das populações envolvidas e afetadas por tais crimes, além da coibição da corrupção.
Mini currículo do autor:
Paulo Pereira é Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Doutor em Ciência Política pela Universidade de Campinas – Unicamp (2011). É Professor do Programa San Tiago Dantas de Pós-graduação em Relações Internacionais da UNESP, UNICAMP e PUC-SP. O seu campo de atuação acadêmica é, prioritariamente, a análise de temas de segurança no continente americano relacionados ao crime organizado transnacional e às propostas de reformulação da abordagem internacional proibicionista sobre as drogas. E-mail: pjrpereira@pucsp.br
Para ler o artigo, acesse:
PEREIRA, P. Os Estados Unidos e a ameaça do crime organizado transnacional nos anos 1990. Rev. bras. polít. int. [online]. 2015, vol.58, n.1, pp. 84-107. [viewed 17th November 2015]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201500105. Available from: http://ref.scielo.org/d3fpnw
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