A participação da Comissão Europeia na missão da Troika: existe um preço a pagar pela União Europeia

Angélica Saraiva Szucko, mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, é membro da equipe editorial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil

rbpiA crise financeira mundial de 2008 teve impactos significativos nas economias europeias. Com o intuito de resgatar os déficits de bancos e de investidores em dificuldade, bem como de evitar o agravamento da crise, alguns países lançaram planos que envolviam grandes somas de fundos do próprio governo, o que resultou no aumento de suas respectivas dívidas soberanas. Os altos níveis de endividamento tornaram impraticável o pagamento ou o refinanciamento das dívidas públicas sem o auxílio de terceiros. A Troika, uma comissão tripartida formada pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional, é responsável tanto pelas negociações dos programas de assistência financeira aos países da Eurozona, quanto pelas avaliações periódicas relacionadas à implementação das condições acordadas com os credores internacionais.

A participação da Comissão Europeia na Troika durante os processos de negociação e de implementação dos programas de assistência financeira bem como suas responsabilidades como uma instituição da União Europeia são analisadas no artigo EU Commission participation in the Troika mission: is there a European Union price to pay?, publicado na mais recente edição da Revista Brasileira de Política Internacional. O professor português António Goucha Soares, autor do artigo, concedeu entrevista no dia 08 de julho de 2015 a Angélica Saraiva Szucko, mestranda em Relações Internacionais na Universidade de Brasília.

1. A descaracterização do papel da Comissão Europeia, como um órgão supranacional, ao representar os interesses dos Estados credores dentro da Troika evidencia que, apesar das premissas de igualdade e solidariedade entre os Estados, há uma hierarquia subjetiva dentro da União Europeia?

A crise do Euro e a desastrada gestão que tem sido feita ao longo da sua duração teve, entre outras coisas, o efeito de provocar uma nova relação de forças entre os Estados europeus. As clivagens anteriores assentavam na divisão norte-sul, ricos e pobres, germânicos-latinos, protestantes-católicos ou, mais raramente, direita-esquerda. Desde 2010, a grande novidade foi a emergência de outra dicotomia no seio da União Europeia: países credores v. países devedores. Acresce que os Estados credores, liderados pela Alemanha, assumiram o controlo político da gestão da crise do Euro, impondo a sua narrativa dos acontecimentos, tendo em consequência obrigado os países devedores à adoção de políticas de austeridade como condição para receber assistência financeira. Sendo que os países credores confiaram à Comissão Europeia a missão de negociar os programas de assistência, e de supervisionar a sua implementação, no quadro da chamada Troika. Logo, a Comissão tem desempenhado essas funções por conta dos Estados credores, colocando-se numa posição de dependência da vontade destes últimos.

Nesta medida, a Comissão deixou de atuar como uma instituição supranacional, e independente dos Estados, no que toca à gestão da crise do Euro. Situação que permitiu a consolidação do papel hegemônico da Alemanha.

2. A crise do Euro ressalta a fragilidade de uma união monetária sem políticas fiscais comuns. Nesse sentido, em sua opinião, a crise do Euro poderia impulsionar um maior adensamento institucional entre os países do bloco ou representaria a estagnação, ou retrocesso, do processo de integração regional?

A crise do Euro destapou as fragilidades da união monetária, criada pelo Tratado de Maastricht, em 1992. Nessa altura, foram diversos os economistas que chamaram a atenção para as insuficiências do acordo. No início da crise do Euro, em 2010, se a resposta da União Europeia tivesse ido no sentido de superar as fragilidades da moeda única, há muito que esta teria terminado.

A criação de políticas fiscais comuns, com um orçamento da zona Euro, seria um dos elementos que permitiria ter superado a crise do Euro. Todavia, os alemães não parecem dispostos a permitir esse desenvolvimento, escudando-se no famoso argumento do risco moral (moral hazard) que tal constituiria para países que consideram ser laxistas. Esta argumentação tem sido uma constante por parte da Alemanha, mesmo antes da criação da moeda única. No momento presente, e com o clima de crescente desconfiança entre Estados, não creio que a Alemanha admita inverter a sua posição. Logo, apesar da retórica de certa elite europeia, que continua a falar no aprofundamento da integração, receio que estejamos antes a entrar numa fase de retrocesso da própria construção europeia.

3. O referendo convocado pelo primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, sobre a aceitação dos pacotes de austeridade propostos pela Troika sinaliza a insatisfação em relação à relativa perda de soberania interna para lidar com os problemas da crise financeira nacional e pode abrir caminho para saída da Zona Euro. Quais seriam os impactos da possível retirada da Grécia da Eurozona para o próprio país e para a União Europeia?

O referendo na Grécia foi o passo mais consequente na contestação da chamada ‘via única’ da política da zona Euro, ou seja, a austeridade como estratégia oficial da moeda única para combater a crise do Euro nunca havia sido desafiada de forma tão ostensiva por um Estado do Euro. De uma forma ou de outra, os países que se opuseram à austeridade acabaram por se sujeitar à linha oficial, como aconteceu com a França de Hollande, ou a Itália de Monti e de Renzi.

Na verdade, a Alemanha e os países próximos, seguidos pela Comissão Europeia, impuseram a ideia que não existe alternativa na União, que não seja o seguimento de políticas de austeridade. A Alemanha reagiu ao referendo na Grécia de uma forma que foi para além da pergunta em questão, pretendendo ver no Não grego uma decisão deste país no sentido do abandono do Euro. O que é ilegítimo.

Uma eventual saída da Grécia do Euro poderá ser o princípio do fim da moeda única. Com efeito, a cada oscilação dos mercados internacionais regressará o pânico sobre a estabilidade da zona Euro, com os especuladores financeiros a apostarem em qual será o próximo país que irá abandonar a união monetária. Por sua vez, se a Grécia sair do Euro irá enfrentar um período muito complicado, com um ulterior empobrecimento da classe média, e maior agravamento das condições de vida no país.

4. O governo britânico, o qual historicamente possui uma postura eurocética e mais distanciada do processo de integração, realizará um referendo sobre a permanência do país na União Europeia. Como o atual cenário de crise, ainda que o país não seja membro da Zona Euro, pode influenciar o resultado dessa consulta popular?

O Reino Unido tem sido o grande ausente do conflito que atravessou a União nos últimos cinco anos. E isso tem marcado pela negativa a qualidade do debate na União, e terá facilitado a deriva hegemônica que se verificou. No fundo, a Alemanha aproveitou também do vazio criado pelas grandes potências para ocupar o lugar de comando no poder político da União.

Embora pense que a população britânica não tenha motivos de vulto para querer deixar a União, porque a Inglaterra soube evitar o maior erro da integração europeia ao recusar aderir ao Euro, o certo é que não sabemos como será a União Europeia na altura dessa consulta popular. Aliás, não sabemos sequer como estará a União Europeia no final deste ano.

Quando o caminho da desintegração começar, será difícil perceber quando acabará.

Mini currículo do autor:

soares

António Goucha Soares é Professor Catedrático do ISEG – Faculdade de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, Portugal onde ocupa a Cátedra Jean Monnet de Direito Europeu. Foi Professor Visitante na Universidade de Brown (1999 e 2003). Obteve seu doutorado em Direito pela EUI, Florença (1996), depois de se formar pela Faculdade de Direito de Lisboa (1985) e do Colégio da Europa, Bruges (1987). É autor de vários livros, como A Livre Circulação de Pessoas na Europa Comunitária (Fragmentos, 1990), Repartição de Competências no Direito Comunitário (Cosmos, 1996), A Carta dos Direitos de Fundamentos da União européia (Coimbra Editora, 2002), A União européia (Almedina, 2006), Concorrência. Estudos (Ed, com M. Marques; Almedina, 2006). Seu último livro – Direito e Política da União européia (Appris, 2013) – foi publicado no Brasil. E-mail: agsoares@iseg.utl.pt

Para ler o artigo, acesse:

SOARES, A. G. EU Commission participation in the Troika mission: is there a European Union price to pay?. Rev. bras. polít. int. [online]. 2015, vol.58, n.1, pp. 108-126. [viewed 18th November 2015]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201500106. Available from: http://ref.scielo.org/39fqzd

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SZUCKO, A. S. A participação da Comissão Europeia na missão da Troika: existe um preço a pagar pela União Europeia [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2015 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2015/11/26/a-participacao-da-comissao-europeia-na-missao-da-troika-existe-um-preco-a-pagar-pela-uniao-europeia/

 

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