Bruno Valim Magalhães, membro da equipe editorial da Revista Brasileira de Política Internacional, e mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF, Brasil
Com o fim da ordem mundial bipolar da Guerra Fria, as operações de paz das Nações Unidas tornaram-se ferramenta central de gestão de conflitos para a sociedade internacional. Entretanto, a natureza dos conflitos nos quais a Organização vem se envolvendo modificou-se. Se, antes, os conflitos eram concentrados em beligerâncias interestatais; hoje, concentram-se mais na seara dos conflitos intraestatais e civis. Esses novos conflitos exigem da Organização das Nações Unidas – ONU missões multidimensionais cujos objetivos sejam velar pela aplicação de acordos de paz amplos e ajudar a estabelecer as bases para a construção de uma paz duradoura e sustentável.
Um desses conflitos envolvendo a ação multidimensional da ONU foi o recentemente ocorrido no Timor-Leste, que necessitou a organização presente em seu território entre 1999 e 2012. Trazemos, então, a avaliação do professor Ramón Blanco, da Universidade Federal da Integração Latino-americana – UNILA, quem faz um balanço das ações de construção de paz da ONU no Timor-Leste no artigo O Processo de Construção da Paz da ONU: uma análise de suas falhas no Timor-Leste, publicado na mais recente edição da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, após analisar in loco a conjuntura do país, a estruturação das missões e suas falhas em erigir a paz durável e sustentável no Timor-Leste.
Blanco concedeu a Bruno Valim Magalhães, membro do corpo editorial da RBPI, uma breve entrevista na qual avalia alguns pontos interessantes de seu artigo e também temas correlatos.
1. Recorrentemente, a grande mídia e a sociedade civil sobrevalorizam o peso das grandes potências, das organizações internacionais e da comunidade internacional pelo insucesso de operações de paz. Entretanto, os líderes locais também têm um papel vital no processo de estabilização. Tendo em vista sua pesquisa in loco no Timor-Leste, qual é sua avaliação do peso dos líderes locais timorenses nesse processo?
Em qualquer processo de reconstrução pós-bélica, a realidade local, em suas diferentes esferas, tem um papel central no processo de construção da paz. Isto certamente também é verdadeiro no que toca às lideranças locais. Contudo, o que se observa é que a ONU, frequentemente, em diferentes cenários pós-conflito ignora, ou pelo menos negligencia, a dimensão local em seus processos de reconstrução. No Timor-Leste, isto evidentemente não foi diferente. Basta observar alguns pontos como, por exemplo, a falta de mecanismos para incorporar, de modo estruturante, a visão timorense ao longo do processo de reconstrução. Isso era tentado algumas vezes, mas, sempre, no âmbito pessoal e muito pouco em termos estruturais. Outro ponto observável no que toca esta questão é o fato de que durante a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste – UNTAET, por exemplo, a ONU, apesar de possuir uma soberania de jure no país, negligenciou estruturas políticas locais que possuíam muito mais alcance e legitimidade perante a população timorense. Isto evidentemente prejudicava o processo de reconstrução como um todo. Por último, as próprias rivalidades existentes dentro da elite timorense, seja ela na esfera política ou securitária, foram negligenciadas. Existem rivalidades que datam desde a época da resistência à Indonésia e que não foram observadas. Isto é central para entender a política timorense, e inclusive a existência/inexistência de violência direta nas ruas. No Timor-Leste, a ausência de violência direta e estabilidade no país muitas vezes são o resultado de um equilíbrio tênue entre as três principais figuras políticas locais – Xanana Gusmão, Mari Alkatiri, e José Ramos-Horta.
2. Em 2006, o premiê timorense, José Horta, pediu auxílio à Austrália, à Malásia e a Portugal antes de recorrer à ONU. Essa escolha por parte do líder timorense é tida como derivada da concepção de que a ONU sofre com problemas de coordenação interna e interagências que a tornam letárgica. Qual é o grau de influência da “descoordenação” das Nações Unidas para o sucesso/insucesso da missão no Timor-Leste?
O processo de reconstrução pós-bélica levado a cabo pela ONU tem uma série de insuficiências e fragilidades. Penso que essas fragilidades variam desde as que têm a ver com a operacionalização deste processo, até as mais conceituais, que têm a ver com o próprio entendimento de paz que sustenta esta prática internacional. Na primeira esfera de fragilidades, a questão da coordenação é certamente um problema importante e no Timor-Leste não seria distinto. Basta para isso perceber que o processo de reconstrução pós-bélica do Timor-Leste teve a participação de uma pluralidade enorme e de diferentes tipos de atores internacionais. Observa-se, por exemplo, desde ONGs internacionais e países cooperando bilateralmente até instituições financeiras internacionais e agências de cooperação de diferentes países. Mesmo se falarmos da própria ONU, o que vemos é um conjunto alargado de diferentes agências do sistema das Nações Unidas atuando no terreno. Obviamente que não se argumenta que esses atores não deveriam participar do processo de construção da paz. Contudo, a questão é que, frequentemente, a atuação desses diferentes atores é observada por meio de uma variedade enorme de projetos, muitas vezes com objetivos diferentes e, não raramente, até mesmo conflitantes.
Dentro de um cenário como esse, é difícil não perceber a questão da coordenação como um problema. A própria ONU reconheceu esta questão da coordenação ao criar a Comissão para Construção da Paz (Peacebuilding Commission – PBC), cujo objetivo é precisamente coordenar os diferentes atores e fluxos de financiamento direcionados a determinados cenários pós-conflito. Entretanto, não podemos perder de vista que o processo de reconstrução pós-bélica da ONU é falho somente por conta da questão da coordenação. Caso contrário, os países onde a PBC atua, provavelmente, estariam com uma realidade bastante distinta da que estão atualmente. É preciso ter em mente que existe uma falha a priori, que tem a ver com o próprio entendimento de paz operacionalizado no terreno, o que fragiliza o processo já à partida.
3. Hoje, muitos estudiosos avaliam o sucesso/insucesso de uma missão de paz por meio da metodologia da paz democrática liberal. Isso favorece abordagens nas quais costumes e práticas culturais locais são ignorados ou marginalizados. Você acredita que as missões da ONU sofrem de um estiramento conceitual de paz e democracia que prejudicaram suas ações no end game no Timor-Leste?
É precisamente este o ponto. A real transformação no que toca às operações de paz não é técnica, mas sim política. Pode-se tentar corrigir fragilidades mais técnicas e se caminhar para alterações relativamente à operacionalização deste processo no terreno. Não há dúvida, por exemplo, que é potencialmente possível corrigir a questão da coordenação anteriormente mencionada. Contudo, a necessidade de transformação é mais profunda. Enquanto não se alterar o próprio entendimento de paz por traz desta dinâmica, dificilmente teremos a construção de uma paz sustentável no longo prazo em cenários pós-conflito. O Timor-Leste é talvez o caso mais emblemático disso. Todos os instrumentos de transformação de conflitos à disposição da ONU foram operacionalizados no país, desde o peacemaking até o peacebuilding, incluindo um processo profundo de state-building. Poucos locais tiveram um engajamento da ONU de modo tão profundo.
Contudo, a ideia de paz por traz de todo o processo, alicerçada pelo entendimento da paz democrática liberal, acaba por ser uma mera implementação de democracias (neo)liberais indiscriminadamente em diferentes cenários pós-conflito. Entretanto, se tivermos um olhar um pouco mais atento à própria ideia de democracia inserida neste entendimento, percebe-se uma noção bastante esvaziada da própria democracia. Neste entendimento de paz operacionalizado em cenários pós-conflito, democracia não é mais do que um simples processo de seleção de lideranças, o que é evidentemente uma ideia bastante simplista. Mais do que isso, ao carregar consigo uma mentalidade de que os cenários pós-conflito são verdadeiras terra nulis o processo de reconstrução pós-bélica acaba por ignorar diversas dimensões da realidade local, desde a política até a cultura, fundamentais para a construção da paz em tais cenários.
Entretanto, é preciso ter em mente que é errôneo pensar que as operações de paz simplesmente falham. Ao contrário, elas servem muito bem ao propósito ao qual foram pensadas. É preciso ter em conta a função que as mesmas têm no cenário internacional. Do modo como estão estruturadas, e com o entendimento de paz que alicerça tal prática, as operações de paz acabam por ser um dispositivo que busca não somente transpor estruturas políticas, econômicas e sociais do centro para a periferia do cenário internacional, o que se configura como talvez um dos mais refinados instrumentos de governança global atualmente; como também pacificar, o que é bem distinto de construir a paz, zonas da cena internacional que são entendidas, e muitas vezes construídas, enquanto turbulentas.
4. O Brasil ainda atua na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – MINUSTAH. Na sua avaliação, em comparação com as operações no Timor-Leste, as principais fragilidades e méritos do modelo que foi visto naquele país asiático podem ser observados no Haiti; ou a atuação do Brasil conseguiu, de alguma forma, modificar aquele modelo?
Esta pergunta é bastante interessante, pois nos permite visualizar alguns elementos interessantes com relação a esta temática. Primeiramente, o próprio fato de poder se pensar em realizar uma comparação concreta entre o engajamento da ONU com o Haiti e o Timor-Leste é um indicativo significativo de uma das principais limitações deste modelo de reconstrução pós-bélica levado a cabo pela ONU. É um indicativo, pois estamos falando de dois países completamente distintos, com histórias e culturas diferentes, em continentes distantes, que tem como origem de suas instabilidades dinâmicas completamente díspares, mas, no entanto, o engajamento da ONU com ambos é bastante semelhante. Estamos falando dos dois casos em que, talvez, a ONU tenha tido um engajamento mais profundo, por mais tempo e destacando ao terreno virtualmente todos os instrumentos de transformação de conflitos à sua disposição. Por isso, e esta é outra semelhança dos dois casos, que há em ambos uma forte construção de uma narrativa sucesso. Ambos os casos, precisamente por conta deste engajamento profundo da ONU, necessitam ser apresentados e construídos enquanto casos de sucesso frente à narrativa internacional. Caso contrário, coloca-se em xeque a própria credibilidade da ONU enquanto um ator central dentro da esfera de transformação de conflitos no cenário internacional. Com a simples possibilidade de comparação entre os dois casos, percebe-se, claramente, que, e esta é outra limitação deste modelo, apesar de cada conflito possuir características e raízes distintas, o modelo levado à cabo pelo ONU é o mesmo, o que é bastante problemático.
Com relação à participação brasileira nessa dinâmica, penso que a participação do Brasil na MINUSTAH veio acompanhada de um sentimento quase que ufanista em vários setores, o que, muitas vezes, deixa a visão um pouco turva e dificulta uma percepção um pouco mais acurada da realidade. A construção da paz no cenário internacional é, sem dúvida, uma esfera chave para uma sólida inserção internacional. Essa tem grande potencial para ser um vetor estruturante da política externa brasileira e um importante alicerce para uma consistente projeção internacional por parte do Brasil. Contudo, é preciso haver uma ideia norteadora que oriente a nossa política externa nesse sentido e que esta inserção não seja periférica, como vem ocorrendo. O Brasil participa nesta discussão, basicamente, enviando tropas para cenários pós-conflito. Não quer dizer que este tipo de prática não seja importante, porque o é. Contudo, mais uma vez, é preciso refletir acerca da política internacional como um todo e a função que as operações de paz têm na mesma. É preciso ter em conta e perceber que na construção da paz, há uma clara divisão internacional do trabalho. Enquanto os países do Norte Global atuam na definição do que é a paz, e como esta deve ser construída em cenários pós-conflito; os países do Sul constroem uma paz à imagem da definição concebida por aqueles. Assim, a construção da paz, cada vez mais, é, como já falamos, mera institucionalização de democracias (neo)liberais em cenários pós-conflito e os países que mais enviam tropas para as missões de paz são: Bangladesh, Índia, Paquistão e Etiópia. Portanto, inserir-se, fundamentalmente, com o envio de tropas, como o Brasil vem fazendo, é construir ativamente a própria subalternidade nesta temática.
Caso o Brasil queira ter uma participação não subalterna e periférica nessa temática, o país precisa, urgentemente, engajar-se, com profundidade, na disputa pela construção de imaginários globais no que toca a paz internacional. É preciso, cada vez, mais caminhar para uma discussão acerca da definição do que é paz, e como esta deve ser construída no terreno. É bem verdade que a noção ‘Responsabilidade ao Proteger’, vocalizada pela Presidente Dilma Rousseff nas Nações Unidas (ONU) em 2011, foi um passo nesta direção. Contudo, foi um passo em falso. Além do vazio teórico da mesma, por não modificar estruturalmente a forma como a construção da paz é pensada, a noção só reforça a posição periférica do Brasil nesta matéria. Uma inserção não periférica passa por trazer novos enquadramentos à questão. No caso do Brasil passaria, por exemplo, pelo avançar de algo como ‘A Paz por Meios Pacíficos’, uma noção muito cara aos Estudos para a Paz, privilegiando a resolução pacífica dos conflitos e o diálogo e a mediação como instrumentos de construção da paz. Mais do que isso, passa por entender que na construção da paz faz mais sentido uma atuação multidimensional, em parceria e em conjunto com a população local e consoante com suas visões de paz, em esferas como segurança, política e economia, mas também educação, saúde, infraestrutura, desenvolvimento humano, dentre outras. Uma real modificação deste modelo por parte do Brasil seria, por exemplo, inserir, de modo conjunto e coordenado, instrumentos como a Agência Brasileira de Cooperação – ABC, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, dentre outros, na lógica, narrativa e ação brasileira no tocante à construção da paz em cenários pós-conflito. Em cenários pós-conflito como, por exemplo, Díli, no Timor-Leste, percebe-se que é esperado do Brasil este papel de buscar novos entendimentos, e, consequentemente, novas práticas no que toca à construção da paz. Há o entendimento de que existiria uma maior compreensão das dificuldades destas localidades, o que levaria a práticas distintas e mais próximas da realidade local, e em conjunto com a população. Resta saber se há o preparo necessário para este enorme desafio. Na ausência de uma real discussão sobre o que se estende por paz, e como se pode atuar nesta esfera, vê-se que há ainda um longo caminho a ser percorrido para uma inserção mais estruturante e não periférica do país nesta matéria.
Mini currículo do autor:
Ramon Blanco é Professor Adjunto no curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). É Doutor (2013) em Relações Internacionais – Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Sua experiência letiva e de pesquisa desenvolvida ao longo da sua pesquisa de campo, em centros de pesquisa internacionais, assim como lecionando em diferentes universidades, centram-se no âmbito das Relações Internacionais em geral, e sobretudo em áreas como: Estudos para a Paz e Transformação dos Conflitos, Teorias das Relações Internacionais, Política Internacional, Segurança Internacional, Conflitos Internacionais, Reconstruções Pós-Bélica e Intervenções Humanitárias. E-mail: blanco.ramon@gmail.com
Para ler o artigo, acesse:
BLANCO, R. The UN peacebuilding process: an analysis of its shortcomings in Timor-Leste. Rev. bras. polít. int. [online]. 2015, vol.58, n.1, pp. 42-62. [viewed 17th November 2015]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201500103. Available from: http://ref.scielo.org/ft6w4n
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