Ana Teresa A. Venâncio, Pesquisadora do Departamento de Pesquisas em História das Ciências e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
As ciências têm história. Não são frutos de descobertas feitas por personalidades especiais, embora sejam produto da ação dos homens e, como coisa social, estejam em interação com outros mundos, como o da religião e o da política, apesar de a modernidade ter imposto a distinção desses mundos como princípio. São essas afirmações que o historiador Mauro Pasqualini — doutor em História Moderna e investigador no Conicet-Buenos Aires — demonstra em seu texto “Un enigma llamado Agostini Gemeli: catolicismo, fascismo y psicoanálisis en la Italia de entreguerras”, publicado em HCS-Manguinhos, volume 23, número 4.
Por meio da atuação de Agostini Gemelli (1878-1959) — padre franciscano e figura central da psicologia italiana nas décadas de 1930 e 1940 —, que teve papel importante na articulação entre catolicismo e fascismo, Pasqualini desenvolve sua análise. Investiga os diferentes caminhos pelos quais, na Itália do entreguerras, onde ocorria a ascensão do fascismo, as ciências psicológicas se institucionalizaram tanto do ponto de vista de seus espaços de produção e circulação dos saberes quanto do ponto de vista das teorias (a psicanálise freudiana, a de seus discípulos, a psicoterapia, a psicologia experimental etc.), que foram mais ou menos bem recebidas pelos diferentes grupos e saberes já em atuação em terras italianas, frente ao novo contexto sociopolítico.
Temos duas boas surpresas ao lermos a excelente história que Pasqualini conta. A primeira é que, de modo exemplar, o autor faz uma revisão criteriosa sobre o que diversos pesquisadores já demonstraram a respeito do padre Agostini Gemelli e de sua centralidade para a história da psicologia, passando, então, a observá-lo do ponto de vista dos laços e acordos institucionais que produziu em torno das ciências psicológicas na Itália do entreguerras. Agostini não é, assim, nem o algoz nem o herói da psicologia italiana.
A segunda surpresa é exatamente podermos observar sob esse novo prisma as relações entre os mundos da ciência, da política e da religião que foram tecidas tendo como ponto de interseção Agostini Gemelli. Esta é a sua centralidade: circular por esses três mundos e articular com as diferentes linhas de força sociais da época o desenvolvimento das ciências psicológicas a partir de certos espaços institucionais e de correntes teóricas especificas, e não de outras. Assim, por exemplo, Agostini constrói no contexto italiano do entreguerras uma relação complexa com a psicanálise freudiana: atacando-a como difusora de uma visão de mundo perigosa para a ordem social católica e sob a égide do fascismo, ao mesmo tempo que a defende pelo conhecimento científico que leva à investigação de importante dimensão do humano: o inconsciente. Com isso, a história da psicologia italiana reforçava a distinção entre uma boa ciência (a psicanálise purificada) e uma má ciência (aquela que deturpa certa ordem social).
Mauro Pasqualini faz coisa muito melhor: demonstra que não há boa ciência e má ciência, mas diferentes modos de fazer ciência e de dar-lhe uso social. A nós, que vivemos a passagem do século XX para o século XXI, fica a pergunta: a que têm servido as ciências que hoje estamos construindo?
Para ler o artigo, acesse
PASQUALINI, M. Un enigma llamado Agostino Gemelli: catolicismo, fascismo y psicoanálisis en la Italia de entreguerras. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. In press. [viewed 19th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702016005000005. Available from: http://ref.scielo.org/9tpmyy
Link externo
História, Ciências, Saúde – Manguinhos – HCSM: www.scielo/hcsm
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