Tharsila D. Fariniuk, doutoranda no Programa de Gestão Urbana na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e membro do corpo auxiliar da urbe, Curitiba, PR, Brasil
O artigo “Arena do Morro e Museu do Amanhã: dois lugares em ação” apresenta uma discussão a respeito das dinâmicas e interfaces criadas pela conjuntura arquitetônica e pela criação de identidades nesses dois locais.
Os entrevistados são da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Paulo Afonso Rheigantz é professor aposentado da UFRJ e professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Pelotas.
Rosa Pedro é professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.
Fabíola Angotti e Marcelo Sbarra são doutorandos no Programa de Pós-graduação em Arquitetura (PROARQ) da UFRJ. Em entrevista, os autores comentam mais sobre a pesquisa.
1. O título do artigo traz a expressão “lugares em ação”, um conceito que remete ao entendimento de um espaço materialmente constituído, porém ativo; a uma dinâmica urbana experimental, ou até mesmo “laboratorial”. O que são “lugares em ação”, e como eles se articulam com as noções de território e de construção de identidade?
Quando falamos lugares em ação, nos referimos a uma materialidade situada, a interfaces que aprendem e se desdobram em outros atores — tais como autores do projeto, gestores, construtores, operários, fiscais, desenhos, maquetes físicas e virtuais, vídeos, textos, solo, topografia, paisagem natural e edificada, morfologia dos edifícios, cores, texturas e arranjos dos materiais de revestimento, vegetação, etc. — que também contém (e escondem) diversas ações que interferem em sua performance. Em ação enfatiza que os lugares não são coisas fixas: segundo Annemarie Mol (2008) e Ignacio Farías (2010a), eles são performados ou trazidos à existência nas redes de objetos, materialidades, tecnologias, natureza, organismos e seres humanos. Como eles emergem de múltiplos processos de associações, suas qualidades não são pré-existentes.
Em ressonância com a proposição de Bruno Latour (2000), os lugares em ação podem ser tratados como interfaces que aprendem a ser afetadas por muitos elementos cujas trajetórias podem ser acompanhadas e registradas em suas dinâmicas. Assim, os lugares em ação se configuram como proposições articuladas que emergem de processos de mediação envolvendo entidades ‘técnicas’, ‘políticas’ e ‘econômicas’. Seriam agentes de transformação — que se recriam continuamente e nos quais nada se propaga sem transformação ou reapropriação local. Como envolvem diferentes materialidades, podem ser entendidos como interfaces que aprendem a ser afetadas e cuja produção será sempre local e situada. Essa compreensão nos remete ao entendimento adicional de que sua construção produz mundo, ou seja: é ontológica e política. Segundo Annemarie Mol o termo política sublinha seu modo ativo e seu “caráter aberto e contestado”. Segundo Ignacio Farías (2010b), os lugares “são negociados por diferentes grupos de atores, articulando simultaneamente componentes materiais e sociais da cidade”. Conhecimento situado e ontologias políticas reforçam o entendimento de que corpos e lugares são transformados em suas configurações, aparências e performações: ao mesmo tempo em que são ‘objetos’ prontos para serem usados, são sujeitos a futuras modificações e, portanto, não são coisas fixas de natureza material.
Nesse sentido, defendemos que a relação de apropriação e reapropriação dos lugares não se faz segundo uma lógica de construção de identidade. Seguimos Michel Serres (1999) quando este argumenta que a construção de identidade opera mais na definição do que nos separa do outro do que naquilo que nos liga, nos conecta, reunindo nos coletivos diferentes entidades heterogêneas. Daí a preferência de Serres (1999) pela noção de múltiplos pertencimentos, frutos da cadeia de conexões que envolvem humanos, artefatos técnicos, dispositivos de ação, pensamentos.
2. Ao longo do texto comenta-se sobre elementos edificados e projetos que podem transitar entre condições de móveis/imóveis; mutáveis/imutáveis, de acordo com contextos diversos, situações (controladas ou não), conexões, etc. Quais elementos ou processos podem ser determinantes na construção da condição de mobilidade e mutabilidade de um objeto arquitetônico.
Como processo de fabricação, qualquer edifício ou lugar demanda a existência de um local e de um terreno. Por isso podemos afirmar que eles são locais ou regionais e performam móveis imutáveis. Como sua concepção mobiliza equipes de arquitetos e de profissionais e consultores de diversas áreas, podemos afirmar que sua produção é interdisciplinar e heterogênea. Os dois projetos citados no artigo, Arena do Morro em Natal/RN e do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro foram concebidos por escritórios europeus e, posteriormente, os projetos executivos foram desenvolvidos por equipes interdisciplinares locais. Foram fruto de parcerias envolvendo entidades públicas e privadas. Sua elaboração demandou diversas idas-e-vindas de desenhos, documentos e membros das equipes de projeto para participar de negociações com os promotores e com os colaboradores locais. Nesse sentido, podemos afirmar que eles também são globais. Como seus projetos e documentos foram transportados sem alterações entre os escritórios europeus e os brasileiros, eles performaram dispositivos móveis imutáveis. Mas as circunstâncias em que os projetos e documentos foram impressos e lidos pelas respectivas equipes técnicas fizeram com que fossem sutilmente reconfigurados. O mesmo, mas também diferente. Isso significa que eles também performaram móveis mutáveis. Mas sua produção inclui (e também esconde) os materiais utilizados na elaboração dos desenhos e documentos, os odores e sabores dos alimentos e bebidas ingeridas pelas equipes de projeto durante sua elaboração; os materiais utilizados pelas equipes locais para imprimir e visualizar os desenhos e documentos recebidos e desenvolver os projetos executivos. Assim, os projetos também performam imóveis mutáveis.
Em resumo, os projetos e os edifícios são interfaces que aprendem e sua existência tem a ver com as conexões entre os atores que performam os lugares em ação, com o conhecimento situado e, também, com as ontologias políticas — ou seja, com o modo como o narrador ou qualquer um dos demais atores convocados operam suas seleções ou, conforme observa Donna Haraway, exercem sua parcialidade. Ou seja, qualquer ator convocado pode vir a ser determinante na construção da condição de mobilidade e mutabilidade de um edifício ou de um lugar urbano.
3. O texto apresenta o princípio de que a urbanidade emerge de associações complexas. Como esse processo vem ocorrendo na Arena do Morro e no Museu do Amanhã?
Se entendida como uma qualidade que não preexiste nos lugares, ruas, edifícios, etc., que resulta da performance dos múltiplos processos de associações, tanto a urbanidade quanto a desurbanidade — admitindo-se que o que pode ser entendido por urbanidade por uns, pode ser visto como desurbanidade por outros — emergem, se produzem e se transformam continuamente a partir da dinâmica dos acontecimentos ou ações que se produzem na Arena do Morro e no Museu do Amanhã e também a partir de outros coletivos que a eles se articulam — como na “preparação” do Rio de janeiro para os grandes eventos na gestão Eduardo Paes e no “abandono” subsequente, agravado pela mudança nas forças políticas. Na condição simultânea de tecnologias e tipos, esses edifícios e os lugares que eles configuram performam sua urbanidade-desurbanidade na duplicidade da singularidade e estabilidade de suas localizações e de suas formas ou configurações e das transformações resultantes de sua capacidade de acolher diferentes performações. A compreensão dessa produção de outros mundos presentes na dinâmica da performance urbanidade-desurbanidade nos edifícios e lugares demanda outras sintaxes, especialmente se considerarmos as quatro espacialidades da ciência — cartesiana, das redes, fluida ou do fogo — propostas por John Law e Annemarie Mol (2001). Assim, mesmo depois de construídos e aparentemente intactos, a tensão dinâmica urbanidade-desurbanidade na Arena do Morro e no Museu do Amanhã tem a ver com as transformações ou performances produzidas por seus ocupantes, pelos dispositivos e sistemas tecnológicos que incorporam, pelas ações que acontecem em seus interiores-exteriores — cujos territórios e fronteiras, segundo Stephen Graham, se diluem ou são reinventadas.
4. Sendo imóveis mutáveis, como vem evoluindo a percepção da população mais diretamente afetada pela Arena do Morro e pelo Museu do Amanhã e até que ponto o uso atual continua hoje conforme a previsão declarada? Quais são as tendências que se apresentam para esses locais?
Sendo interfaces que aprendem a ser afetadas cujas existências são sempre situadas e emergem a partir das conexões entre os atores que os performam, os edifícios e lugares são ontologias políticas produzem mundos que são continuamente negociados e transformados em suas configurações, aparências e performações. Por serem ‘objetos’ prontos para serem usados e sujeitos a futuras modificações, sua existência está diretamente relacionada com o modo como o narrador opera sua seleção e exerce sua parcialidade. Edifícios e lugares em ação são interfaces que aprendem, que se desdobram em outros atores e também contém (e escondem) diversas ações que interferem em sua performance.
No caso da Arena do Morro, a forte identificação e aceitação por parte dos moradores e frequentadores da favela Mãe Luiza a partir da sua construção e inauguração, está evidente no cuidado e carinho com que o conjunto tem sido tratado e pela intensidade e variedade da programação das atividades durante nossa visita, realizada em outubro de 2015. Em função da distância e da falta de notícias, não temos como comentar os desdobramentos de seu uso atual.
Com relação ao Museu do Amanhã vale destacar a existência de uma política inclusiva que busca reconhecer os moradores e a história da Zona Portuária como potenciais ativos no processo de transformação desta região. O setor de Relações Comunitárias promove atividades de mobilização, como entrada gratuita para residentes, programas culturais que incluem atividades com escolas vizinhas, convite para moradores atuarem como palestrantes em seminários. A relação entre Museu e moradores tem produzido ações conjuntas para pensar a Zona Portuária do Rio de Janeiro a partir de ideias e necessidades coletivas. Ao mesmo tempo, durante os Jogos Olímpicos (2016) a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro divulgou ações promocionais com o intuito de atrair visitas de turistas locais e estrangeiros. Se utilizou uma cartografia que, ao mesmo tempo “apagava” a memória local (conforme a entendem Montaner e Muxí, 2014), ignorando a cidade pré-existente (o Centro com sua densidade de edifícios, o Morro da Conceição, Santo Cristo, etc.) e destacando o que se entende como edifício icônico: o Museu do Amanhã como um objeto inserido na reconfiguração urbana da nova Zona Portuária, cujo papel e protagonismo nos remete aos textos de Latour (2008) sobre o “objeto-fetiche”.
Assista a seguir o vídeo com a entrevista.
Referências
FARÍAS, I. Interview with Stephen Graham. In: FARÍAS, I.; BENDER, T. (eds.) Urban assemblages – how actor-network theory changes urban studies. London: Routledge, 2010a. p. 197-206.
FARÍAS, I. Introduction: decentring the object of urban studies. In: FARÍAS, I.; BENDER, T. (eds.) Urban assemblages – how actor-network theory changes urban studies. London: Routledge, 2010b. p. 1-24.
LATOUR, B. Ciência em ação. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
LATOUR, B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: NUNES, J.; ROQUE, R. (orgs.) Objetos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2008. p. 39-62.
LAW, J.; MOL, A. Situating technoscience: an inquiry into spatialities. Environment and Planning D: Society and Space, 2001, v. 19, n. 5, p. 609-621. [viewed 06 October 2017]. ISSN: 1472-3433. DOI: 10.1068/d243t. Avaliable from: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1068/d243t#articleCitationDownloadContainer
MOL, A. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, J.; ROQUE, R. (orgs.) Objetos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2008. p. 63-77.
MONTANER, J.; MUXÍ, Z. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos. Barcelona: Gustavo Gili, 2014.
SERRES, M. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo: Unimarco, 1999.
Para ler o artigo, acesse
RHEINGANTZ, P. A., PEDRO, R. M. L. R., ANGOTTI, F. B. and SBARRA, M. H. Arena do Morro e Museu do Amanhã: dois lugares em ação. urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana [online]. 2017, vol.9, n.3, pp.387-400. [viewed 19 October 2017]. ISSN 2175-3369. DOI: 10.1590/2175-3369.009.003.ao02. Available from: http://ref.scielo.org/trsck7
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Sobre Tharsila Dallabona Fariniuk
Tharsila Dallabona Fariniuk é arquiteta e urbanista, Mestre em Gestão Urbana e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana (PUCPR). É membro do corpo auxiliar da urbe e pesquisadora na área de cidades inteligentes e dinâmicas urbanas alteradas pela presença das tecnologias.
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