Novembro Azul, PSA e campanhismo na saúde dos homens brasileiros

Ana Carolina D’Angelis, jornalista, assessora de comunicação da SBMFC, São Paulo, SP, Brasil

Segundo o INCA (2017), o câncer de próstata é o segundo que mais atinge homens no Brasil, atrás apenas do melanoma, com estimativa de 68.220 novos casos no Brasil em 2018. Uma das respostas mais conhecidas para o problema é a campanha “Novembro Azul”, quando os espaços públicos passam a ser tomados por faixas, banners e prédios iluminados na cor azul, e até mesmo brindes ou descontos na aquisição de produtos são promovidos como forma de alertar para a importância do diagnóstico precoce da doença. No entanto, já há algum tempo as evidências de estudos científicos têm questionado a efetividade do diagnóstico precoce. Segundo Barry (2009), apesar do notório esforço dos autores dos estudos que recomendam a estratégia, pode haver, na melhor das hipóteses evidência de uma discreta redução de mortalidade que ocorre à custa de um significativo sobrediagnóstico e sobretratamento. Ele ressalta ainda que o que está em jogo não é verificar se o rastreamento é efetivo ou não, mas, sim, se ele traz mais benefícios do que danos.

A medicina de família e comunidade, enquanto especialidade médica que tem como uma de suas principais características promover o cuidado integral ao paciente, tem questionado a sociedade como um todo sobre os riscos que os excessos de exames causam não só aos indivíduos, mas também ao sistema de saúde como um todo. A missão é complicada: a ideia de que “prevenir é melhor que remediar” já está consolidada no imaginário popular, o que tem induzido pessoas saudáveis a buscar exames, medicamentos e outros procedimentos com intenção de se adiantar a uma possível doença que diagnosticada no início do desenvolvimento, teria maior chance de cura.

A imprensa tem grande responsabilidade sobre o fato: muito dessa ansiedade se deve às notícias que são publicadas diariamente sobre novos tratamentos, vacinas, exames que supostamente salvam vidas, sem mensuração do impacto que o conteúdo trará na população. Alguns jornalistas deixam o embasamento científico de lado, por não ter tempo de ler os estudos, por falta de conhecimento sobre o assunto ou até mesmo pela tentativa de dar o assunto com exclusividade e trazer mais cliques para aquela matéria. Além disso, é, em certa medida, compreensível que a imprensa embarque no afã que prevalece na medicina moderna, que é o de “vencer a batalha contra as doenças”, nunca disputa impossível de ser vencida, naturalmente.

Baseada no conceito de prevenção quaternária de Jamoulle (2015), que consiste em identificar pessoas em risco de excesso de intervenções médicas com o objetivo de protegê-las contra essas intervenções, sugerindo alternativas eticamente aceitáveis, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) questionou publicamente a campanha e sua proposta em 2015, numa ação desenvolvida por seu Grupo de Trabalho de Prevenção Quaternária, formado por médicos de família e comunidade sem vínculo com empresas do complexo médico-industrial. Foi produzido um documento sobre o Novembro Azul, disponível na íntegra no site da Sociedade, cujo conteúdo tinha o objetivo de alcançar profissionais de saúde, entidades filantrópicas, gestores públicos e privados e empresas que apoiavam ou pretendiam apoiar a iniciativa, bem como indivíduos interessados no tema e profissionais de saúde em geral. A SBMFC o adotou como posicionamento oficial da entidade sobre o assunto, publicando-a em outubro daquele ano, com divulgação na imprensa de diversos formatos e alcances, especialmente entre jornalistas especializados em saúde de grandes veículos, abrindo o debate público em torno da questão.

Houve repercussão, incluindo alguns movimentos promovidos pelos setores que defendiam o rastreamento do câncer de próstata. A avaliação do que ocorreu na campanha daquele ano gerou o artigo “Um novembro não tão azul: debatendo rastreamento de câncer de próstata e saúde do homem”, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação (v. 22, n. 64), escrito por profissionais da área da saúde e da comunicação, com o objetivo de promover uma discussão baseada em evidências fazendo análises críticas sobre os pontos positivos e negativos do rastreamento do câncer de próstata e da campanha “novembro azul” como um todo. Profissionais da área de saúde e da comunicação e mesmo o público em geral podem, através da leitura do artigo, refletir sobre ações que embora já estejam consolidadas na sociedade, não necessariamente trazem mais benefícios do que malefícios à maioria da população. A imprensa e o setor de saúde têm um papel fundamental e complementar na mobilização da opinião pública, e a responsabilidade conjunta de apontar caminhos mais adequados às necessidades da população corretos. Para isso, devem cercar-se de procedimentos éticos e esclarecedores, buscando, cada vez mais, resgatar o compromisso com a promoção da cidadania.

Referências

BARRY, M. J. Screening for prostate cancer – the controversy that refuses to die. N Engl J Med., v. 360, n. 13, p. 1351-1354, 2009. ISSN: 1533-4406 [reviewed 22 March 2018]. DOI: 10.1056/NEJMe0901166. Avaliable from: http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMe0901166

INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER. Próstata. 2017. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/tiposdecancer/site/home/prostata

JAMOULLE, M. Quaternary prevention, an answer of family doctors to overmedicalization. Int J Health Policy Manag., v. 4, n. 2, p. 61-64, 2015. ISSN: 2322-5939 [reviewed 22 March 2018]. DOI: 10.15171/ijhpm.2015.24. Avaliable from: http://www.ijhpm.com/article_2950_616.html

Para ler o artigo, acesse

MODESTO, A. A. D., LIMA, R. L. B., D’ANGELIS, A. C. and AUGUSTO, D. K. Um novembro não tão azul: debatendo rastreamento de câncer de próstata e saúde do homem. Interface (Botucatu)[online]. 2018, vol.22, n.64, pp.251-262. ISSN 1807-5762. [viewed 12 April 2018]. DOI: 10.1590/1807-57622016.0288. Available from: http://ref.scielo.org/vj8mjk

Link externo

Interface – Comunicação, Saúde, Educação – ICSE: www.scielo.br/icse

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

D'ANGELIS, A. C. Novembro Azul, PSA e campanhismo na saúde dos homens brasileiros [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/04/17/novembro-azul-psa-e-campanhismo-na-saude-dos-homens-brasileiros/

 

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