“Arte e Cidade” aborda as intervenções artísticas que compõem as paisagens urbanas

Cornelia Eckert, Docente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

Cacique Raoni, da tribo Caiapó. Mural de Eduardo Kobra.

Desde a primeira impressão na parede, na pedra, na terra, no barro, na areia, a arte vibra na memória coletiva, desvenda o passado e constrói o futuro, resguarda o afeto e descreve o conflito, evoca as crenças, as ideologias e reúne as energias para a constante imaginação. Tal fulgor deve-se à necessidade premente de comunicarmos com o outro, de estabelecermos teias de significado que passam por linguagens distintas. E comunicamos através de instrumentos e canais plurais. À falta de uma folha de papel, escrevemos na parede. Escrever (ou desenhar) na parede tem outra repercussão coletiva, chega a uma plateia mais vasta. E, como tal, desde tempos imemoriais que desenhamos, escrevemos ou pintamos muros e paredes, com o intuito de materializar (e partilhar) pensamentos, imagens e imaginários.

Aquilo que comunicamos na cidade, através das suas superfícies, é entendido de forma diferente pelos seus múltiplos habitantes. Nem tudo se encaixa na categoria de arte, tal como socialmente é definida. O que nos conduz, também, a uma reflexão sobre o papel destas formas de comunicação não artísticas e, em muitos casos, consideradas disruptoras e desobedientes, incitando ao seu silenciamento. São conhecidos os casos de zelo extremo por parte das autoridades públicas, preocupadas em conter certas “pragas urbanas” manifestadas por essas vozes desobedientes, atentatórias da moral e dos bons costumes no uso da cidade. Graffiti ou pixo são, muitas vezes, alvos de perseguição e apagamento, no âmbito de processos de higienização urbana.

É singular dizer que as cidades contemporâneas estão mais coloridas de graffiti, de estêncis, de lambes ou colagens, além de outras formas de arte urbana e arte de rua. Diferentes indivíduos e grupos participam dessa construção da paisagem visual da cidade, pintando muros e paredes, colorindo edifícios, colando stickers, fazendo gardening guerrilla, expondo-se eles mesmos aos olhares, etc. E são, muitas vezes, essas expressões minoritárias, vernaculares, transgressoras, que afrontam o conceito de arte oficial e os modelos de uma cidade planificada e asséptica.

Daí que a paisagem visual da cidade hoje seja composta por uma multitude de expressões pictóricas e estéticas que convivem com a arte pública oficial. As variadas intervenções das artes de rua — mesmo que isso ocorra por meio de um tipo de leitura sem palavras, como no caso das tags — produzem narrativas da cidade tal qual seu conjunto arquitetônico e seus monumentos históricos. Essas artes frequentemente escapam do que é consentido, contrariando os “juízos de gosto” das belas artes, sendo categorizadas, por vezes, como expressões de vandalismo e ações de poluição da paisagem. As artes de rua provocam não apenas um outro regime estético, tal qual se refere Jacques Rancière (2009), como agem promovendo novos usos e práticas de espaço (CERTEAU, 1994), diversificando fabulações e compondo novas trilhas narrativas da/na cidade.

As expressões estéticas no espaço público sempre fizeram parte de uma certa ideia de cidade. A chamada “arte pública” representa uma certa visão daquilo que são os modelos normativos e estéticos dominantes. São expressões que celebram os valores mais consensuais e dominantes de uma determinada sociedade. No entanto, a arte na cidade não é produzida apenas por aqueles que detêm o poder de uso e planejamento do território. A cidade é vivida pelos cidadãos, que nela inscrevem as suas singularidades. A apropriação da cidade sobrevém, também, pela sua construção simbólica e estética. Tornar a paisagem citadina um território de significado, proximidade, identidade e fruição passa pela sua (de)marcação simbólica.

No volume 25, número 55 do periódico Horizontes Antropológicos, a nós, como pesquisadores participantes da Rede de Pesquisa Luso-Brasileira em Artes e Intervenções Urbanas e do projeto luso-afro-brasileiro Todas as Artes, Todos os Nomes, cabe a alegria de compartilhar artigos inéditos que buscam respostas em todos os sentidos sobre a arte na cidade, sobre a cidade e a arte. Destacamos alguns dos artigos desta edição:

Andrea Pavoni, em seu artigo intitulado “Speculating on (the) urban (of) art: (un)siting street art in the age of neoliberal urbanisation”, aborda de forma teoricamente densa um conjunto de impasses e paradoxos que rodeiam a arte urbana contemporânea. Aquilo que o artigo retrata é o papel que a arte urbana tem desempenhado, atualmente, a serviço de uma agenda levada a cabo pelos poderes públicos, nomeadamente instrumentalizando essas expressões em benefício da revitalização e promoção do espaço público.

No artigo de Marielen Baldissera, “Barraqueiras e heroínas: escritos feministas nas ruas de Porto Alegre”, a poesia inscrita por mulheres no Centro Histórico e na Cidade Baixa, em Porto Alegre, por meio de variados modos — graffiti, pixos, estêncis, lambes, adesivos, grafias e figurações — é trazida para análise junto com imagens fotográficas e falas que descrevem as trajetórias sociais, intenções e as circunstâncias que cercam a prática dessa arte feminista. Concebendo as artistas como flâneuses que se deslocam, muitas vezes com riscos, apropriando-se de espaços públicos também com a imposição de seus corpos, a autora, fotógrafa e por isso ela mesma flâneuse, torna inquietos e tensiona a aparente naturalidade desses efêmeros escritos que convivem com outras tantas intervenções urbanas, apresentando questões sobre sua condição feminista, sua disseminação, sua variabilidade e a contundência com que são propostos.

No artigo “Entre calçadas, pixações e parentesco: a cidade como campo de batalha em torno das lesbo/homoparentalidades e do acesso à PMA na França”, Anna Carolina Horstmann Amorim analisa diferentes intervenções urbanas em diferentes tempos e que afetam a pesquisadora em seu tema de pesquisa: parentesco, suas famílias e trajetórias reprodutivas e de ação na construção de suas maternidades lésbicas no contexto francês.

Para ilustrar a capa, escolhemos o retrato do Cacique Raoni, da tribo Caiapó. O mural do brasileiro Eduardo Kobra ocupa a empena de um prédio de cinco andares na Rua António Gedeão, na zona de Marvila da cidade de Lisboa, Portugal. Fotografado por José Luís Abalos Júnior (PPGAS/UFRGS), representa um alerta para o problema das populações indígenas no Brasil e no mundo inteiro. Nascido no Jardim Martinica, bairro pobre da zona sul de São Paulo, Kobra tornou-se um dos mais reconhecidos muralistas da atualidade, com obras em cinco continentes. Autodidata, desenvolveu sua arte inspirado em artistas como o britânico Bansky, os norte-americanos Eric Grohe e Keith Haring e o mexicano Diego Rivera (KOBRA, 2019).

Referências

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

KOBRA. Biografia, 2019. Disponível em: http://www.eduardokobra.com/biografia/

RANCIÈRE, J. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.

Para ler os artigos, acesse

Horiz. antropol. vol.25 no.55 Porto Alegre set./dez. 2019

Link externo

Horizontes Antropológicos – HA: www.scielo.br/ha

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

ECKERT, C. “Arte e Cidade” aborda as intervenções artísticas que compõem as paisagens urbanas [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2020 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2020/01/21/arte-e-cidade-aborda-as-intervencoes-artisticas-que-compoem-as-paisagens-urbanas/

 

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