Márcia Pereira Cunha, Pesquisadora do LMI-SAGEMM (USP/IRD) e associada ao Laboratório Sophiapol (Paris-Nanterre), Universidade de São Paulo, SP, Brasil.
Viviane Gonçalves de Campos, Consultora editorial, Sorocaba, SP, Brasil.
Em meio a transformações no campo da política institucional e das políticas públicas existe uma iniciativa que, desde pelo menos 2010, vem se desenvolvendo de maneira ininterrupta no Brasil: a Educação Financeira. Desde os projetos-pilotos de então, instituições e organizações públicas e privadas, nacionais e internacionais, vêm produzindo material didático, promovendo atividades de formação da comunidade escolar e entrando, assim, nas salas de aulas de estudantes do Ensino Fundamental ao Médio. O artigo “O mercado financeiro chega à sala de aula: educação financeira como política pública no Brasil”, publicado no periódico Educação e Sociedade (v. 41), descreve e analisa as origens e a organização dessa iniciativa. O texto resulta de pesquisa de pós-doutorado de Márcia Cunha, desenvolvida no Departamento de Sociologia da Unicamp com recursos do CNPq, entre 2016 e 2017.
A primeira característica que chama atenção no estudo da inserção da Educação Financeira nas escolas brasileiras é a estrutura organizacional que a sustenta, caracterizada por extensa cadeia que interliga os planos internacional, nacionais e locais. A principal referência no plano internacional é a OCDE, com o Financial Education Project, de 2003, e a International Network on Financial Education (INFE), em 2008. A INFE é uma rede que reúne experts e representantes de instituições públicas de diversos países para a produção de dados e conteúdos, disseminação de diretrizes e ferramentas de ação relativas à promoção da Educação Financeira ao redor do globo. Em 2010, seguindo uma dessas orientações — a de criação de estratégias nacionais de Educação Financeira —, o governo brasileiro edita decreto criando a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF). O Quadro 1 apresenta órgãos e instituições que a compõem, e em um dos primeiros documentos elaborados seu objetivo é definido como “promover e fomentar a cultura de educação financeira no país, ampliar a compreensão do cidadão, para que seja capaz de fazer escolhas conscientes quanto à administração de seus recursos, e contribuir para eficiência e solidez dos mercados financeiros, de capitais, de seguros, de previdência e de capitalização” (COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS, [20–?], p. 2). Trata-se, portanto, de conjunto de atores que detém alto nível de recursos de poder, o que abre espaço para a pergunta: em que medida a comunidade escolar foi agente ativo nas tomadas de decisão e implementação da temática como conteúdo pedagógico?
Quadro 1 – Estrutura organizacional para a Estratégia Nacional de Educação Brasileira
Esfera | Instituição | Participantes | |
Órgãos do governo | Sociedade civil | ||
Estratégica | Comitê Nacional de Educação Financeira (CONEF) | • Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (ANBIMA) |
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• Banco Central do Brasil | |||
• Comissão de Valores Mobiliários | |||
• Superintendência Nacional de Previdência Complementar | |||
• B33 | |||
• Superintendência de Seguros Privados | • Conferederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg) |
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• Ministério da Justiça e Cidadania | |||
• Ministério da Previdência Social4 | |||
• Ministério da Educação | |||
• Ministério da Fazenda | • Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) |
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Consultiva | Grupo de Apoio Pedagógico (GAP)2 | • Banco Central do Brasil | |
• Comissão de Valores Mobiliários | |||
• Superintendência Nacional de Previdência Complementar | |||
• Superintendência de Seguros Privados | |||
• Ministério da Educação | |||
• Ministério da Fazenda | |||
• Ministério da Previdência Social4 | |||
• Ministério da Justiça e Cidadania | |||
• 5 Instituições Federais de Ensino, sendo uma por região brasileira | |||
• Conselho Nacional de Educação | |||
• Conselho dos Secretários de Educação | |||
• União dos Dirigentes Municipais de Educação | |||
Coordenação | Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF) | • ANBIMA | |
• B3 | |||
• CNseg | |||
• FEBRABAN
|
Fonte: 1 Segundo portal da ENEF (http://www.vidaedinheiro.gov.br/), consulta em 06/12/2017. Em consulta em 31/12/2018, o Sebrae e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (estados e DF) apareciam acrescentados aos representantes da sociedade civil no CONEF. 2 Agrega, ainda, a Secretaria Executiva, exercida pelo Banco Central e uma comissão de suporte técnico, com a mesma composição do CONEF. 3 Empresa resultante da fusão da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros com empresa CETIP, para oferta de serviços de consultoria financeira. 4 Algumas das fontes consultadas não mencionam esse ministério.
A segunda característica destacada está relacionada com a primeira: embora a presença da iniciativa privada nos debates acerca dos rumos da política educacional não seja uma novidade, neste caso, a interferência se dá em sua maior parte por organizações ligadas ao mercado financeiro. Enquanto as justificativas de sua importância aleguem a preparação do indivíduo do futuro para um mundo novo, que exigirá dele novas competências e atitudes, o trabalho sugere tratar-se mais da construção mesma desse mundo, pela ênfase no tratamento de problemas que poderiam ser tratados em termos sociais e coletivos na chave do comportamento e das disposições individuais.
O estudo pretende, ao explorar essas características e as questões decorrentes delas, desnaturalizar a inserção desses conteúdos específicos no currículo e nas salas de aula. É preciso, segundo a autora, considerar o apelo da temática no contexto de desconstrução das formas coletivas de proteção social e do trabalho, para que se discuta francamente se é esta abordagem que se deseja desenvolver para o enfrentamento dos desafios que a realidade impõe também para a educação.
Referências
COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS – CVM. Estratégia Nacional de Educação Financeira – ENEF, mimeo, [20–?].
Para ler o artigo, acesse
CUNHA, M. P. O MERCADO FINANCEIRO CHEGA À SALA DE AULA: EDUCAÇÃO FINANCEIRA COMO POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL. Educ. Soc. [online]. 2020, vol. 41, e218463, ISSN 1678-4626 [viewed 20 May 2020]. DOI: 10.1590/es.218463. Available from: http://ref.scielo.org/qs9tfj
Links externos
Educação e Sociedade – ES: www.scielo.br/es
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