Ana Maria Veiga, Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba, editora do periódico Sæculum e divulgadora da Revista Estudos Feministas, João Pessoa, PB, Brasil.
Vera Gasparetto, Pós-doutoranda em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora do IEG/LEGH, jornalista e divulgadora da Revista Estudos Feministas, Florianópolis, SC, Brasil.
A forte onda reacionária que atravessamos na contemporaneidade, em âmbito mundial, se traduz em tentativas de retiradas de direitos e promoção de violências diversas sobre as mulheres e a população LGBTQIA+, além de impedir o avanço das pautas históricas de suas reivindicações. Este cenário articula antagonismos e disputas na cena pública, que dizem respeito igualmente às vidas privadas e às existências físicas das mulheres em seus diferentes pertencimentos. Vivemos tempos de pandemias: para além da pandemia sanitária da COVID-19, estão as crises de paradigma societário, produzidas por sistemas de exclusão econômica, política, social, cultural. São “guerras” cotidianas sobre a resistência das mulheres contra estruturas racializadas, generificadas e classistas, refletidas na obra Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres, de Susan Faludi (2001), que analisa uma ofensiva às conquistas das mulheres, que teve início na década de 1980 mas que ainda reverbera, atribuindo ao “excesso de independência” os problemas que enfrentam, na relação com seus corpos, subjetividades e seus modos de pensar.
Dessa reflexão sobre as guerras contra as mulheres, destacam-se na Revista Estudos Feministas (vol. 28, no. 3), alguns artigos que tratam de pesquisas sobre guerras, tanto bélicas quanto simbólicas, sobre e com seus corpos. Áureo de Toledo Gomes e Lorraine Morais Braga, da Universidade Federal de Uberlândia, tratam do “Abuso e exploração sexual em operações de paz: o caso da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH)”, colocando em pauta estupros e outras violências perpetrados pelos próprios agentes de estabilização. Gomes e Braga consideraram a influência da masculinidade militarizada e das condições socioeconômicas do país para a perpetuação da violência contra meninas e mulheres durante a missão de paz. Incluímos no argumento uma percepção de acessibilidade aos corpos femininos negros que reproduz visões coloniais de alteridade e de não-humanidade. O artigo denuncia que abuso e violência sexual são comuns nos contextos internacionais relativos a guerras e conflitos civis.
Ainda no sentido das guerras contra as mulheres, o texto “Abordagens à violência sexual em julgamentos por crimes contra a humanidade na Argentina”, assinado por Victoria Alvarez (Universidad de Buenos Aires), traz os principais debates jurídicos acerca da possibilidade de julgar os crimes de Estado contra as mulheres presas políticas nas ditaduras do Cone Sul, em particular da Argentina, onde as mulheres sofreram inúmeras formas de violência sexual e psicológica. Até hoje, questionar a paternidade dos netos sequestrados, reivindicados pelas Abuelas de la Plaza de Mayo, é um tabu, parte de um trauma social. No Chile, por exemplo, matéria publicada no periódico El País (CÁDIZ, 2020; MONTES, 2019) trata do reconhecimento do estupro como uma forma de tortura específica sobre as mulheres. Este reconhecimento decorre das resistências das ex-presas políticas, que lutaram desde a reabertura política pelo julgamento da violência sexual como um crime diferenciado de tortura, que se caracteriza como terrorismo de Estado.
Sobre as guerras bélicas, o artigo “Guerreiras ou Anjos? As Mulheres Brasileiras e a Grande Guerra” reflete sobre a participação de mulheres nas funções de enfermeiras de Guerra e de soldadas. Elaine Pereira Rocha da Universidade de West Indies, analisa que a Primeira Guerra Mundial foi um acontecimento internacional que se deu em meio a transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, e que encontrou na agenda feminista e sufragista as discussões sobre o papel da mulher na sociedade moderna. A repercussão no Brasil foi a partir de 1917, quando o governo brasileiro declarou guerra à Alemanha. Na Rússia, a formação da “Legião Feminina da Morte” impactou o mundo com imagens de mulheres com uniformes militares e participando em combates diretos. A autora destaca também a chamada da Cruz Vermelha ao voluntariado de mulheres nesse conflito.
No livro “A Guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Aleksiévitch” (2016) confirma que as histórias das guerras costumavam ser contadas sob a ótica masculina, pois, ainda que durante a Segunda Guerra Mundial quase um milhão de mulheres tenham lutado no Exército Vermelho, suas histórias nunca foram contadas. Na obra, Aleksiévitch abre espaço para as vozes e as trajetórias dessas mulheres, suas angústias e memórias do frio, da fome e da violência sexual, além da experiência de viver fugindo da morte. Pode-se entender a relação entre mulheres e guerra na compreensão de seus corpos como territórios a serem defendidos, tal como propõe Veiga (2009) ao referir-se a torturas sexuais contra os corpos de mulheres sul-americanas. E perceber que a chamada “cultura do estupro” ainda permanecerá, enquanto houver o silenciamento dessas questões.
Referências
ALEKSIÉVITCH, S. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CÁDIZ, P. Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet. EL PAÍS, 17 nov. 2020. [viewed 04 December 2020]. Available from: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-18/sentenca-historica-contra-o-centro-de-tortura-de-mulheres-na-ditadura-de-pinochet.html?fbclid=IwAR2FTdS0HIxJ81N9b5nv7EgG4LPYCnodNsr FJ7euFVqiYUdvGhHB1dJF_T8
FALUDI, S. Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
MONTES, R. Gravidez por estupro e tortura revelam como a era Pinochet fez das mulheres troféus de guerra. EL PAÍS, 12 set. 2019 [viewed 30 November 2020]. Available from: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/10/internacional/1568135550_217522.html
VEIGA, A.M. Um território a ser defendido: corpos, gênero e ditaduras. Revista de História Comparada [online], 2009, vol. 3, no. 2, pp. 1-23. ISSN: 1981-383X [viewed 30 November 2020]. Available from: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/116
Para ler os artigos, acesse
ALVAREZ, V. Abordajes de la violencia sexual en los juicios por delitos de lesa humanidad en Argentina. Rev. Estud. Fem. [online]. 2020, vol. 28, no. 3, e60950. ISSN: 1806-9584 [viewed 30 November 2020]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n360950. Available from: http://ref.scielo.org/d4qw5y
ROCHA, E. P. Guerreiras ou Anjos? As Mulheres Brasileiras e a Grande Guerra. Rev. Estud. Fem. [online]. 2020, vol. 28, no. 3, e61492. ISSN: 1806-9584 [viewed 30 November 2020]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n361492. Available from: http://ref.scielo.org/bbfdwb
TOLEDO, A. and BRAGA, L.M. Abuso e exploração sexual em operações de paz: o caso da MINUSTAH. Rev. Estud. Fem. [online]. 2020, vol. 28, no. 3, e60992. ISSN: 1806-9584 [viewed 30 November 2020]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n360992. Available from: http://ref.scielo.org/r49j7r
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