Guerra ao governo democrático das infâncias

Sílvio Gallo, Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil.

Rafael Limongelli, Doutorando em Educação (Unicamp/CAPES), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil.

Imagem: Domínio Público

Tatear sem medo as superfícies do mundo. Enfrentar com sangue nos olhos perigos que não se sabe mensurar. Invadir territórios, quintais e ruas sem se preocupar com a propriedade privada. Interrogar as mais tenebrosas perguntas sem receio da resposta, feliz ou amarga. Contar a quantidade de estrelas no infinito. Passar horas a fio sem produzir nada de útil para ninguém. Coçar e cutucar o corpo todo curioso pelos fluidos possíveis. Não dar conta do tempo. Não saber do peso da culpa. Não temer o policial, o pai, o professor, o deus, a deusa, o inferno. Xingar com força qualquer tipo de empecilho ao desejo. Cortar os fios do freio do carro em plena ladeira em noite escura. Uma coragem obstinada (STIRNER, 2009) em habitar o mundo. A infância, sob esse olhar, pode ser percebida como um território de ingovernáveis delírios e indomesticáveis devires.

Schérer (2006a) comenta que a infância é vivida em nosso mundo contemporâneo como uma espécie de doença. A criança e o jovem, escapando ao controle da sociedade, inquietam e provocam medo, ao desafiar as normas e os padrões instituídos. Mas, sendo a infância uma invenção da sociedade adulta (SCHÉRER; HOCQUENGHEM, 1976; SCHÉRER, 2006b; SCHÉRER, 2009), crianças e jovens aí estão para serem educados e controlados, de modo a vir a constituir o futuro da sociedade. É imperioso, pois, que se exerça o controle sobre crianças e jovens, de modo que eles não se percam, não saiam do caminho para eles demarcado pela sociedade e pelos adultos. É de fundamental importância que as crianças sejam governadas, tuteladas pelos adultos, mantidas em uma condição de menoridade.

No artigo “‘Infância maior’: linha de fuga ao governo democrático da infância”, publicado no periódico Educação e Pesquisa (vol. 46), reflete-se em torno da noção de um governo da infância, procurando compreender como a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 insere-se no contexto de uma lógica de governamentalidade (FOUCAULT, 2008) que consistiu em instituir crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, aptos a serem governados democraticamente para, em seguida, pensar linhas de fuga possíveis a tal governamento: uma infância maior, preconizada por Charles Fourier. Ainda que para Foucault (2008, 2013) todo governo como condução de condutas implique a emergência de contra condutas, a afirmação daqueles que não desejam ser governados dessa maneira e clamam por outra forma de governo, queremos aqui dar um passo além: na companhia de Deleuze e Guattari (2014) pensar linhas de fuga ao governo. Que potencial há na infância para o ingovernável?

Referências

DELEUZE, G. and GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi. Paris: Vrin, 2013.

SCHÉRER, R. Pré-ambule: L’échec d’une mainmise. In: FOURIER, C. Vers une enfance majeure. Paris: La Fabrique, 2006a. pp. 9-45.

SCHÉRER, R. Émile perverti ou des rapports entre l’éducation et la sexualité. Paris: Désordres-Laurence Viallet, 2006b.

SCHÉRER, R. Infantis. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

SCHÉRER, R. and HOCQUENGHEM, G. «Co-Ire»: album systématique de l’enfance. Recherches, Paris, no. 22, 1976.

STIRNER, M. O único e sua propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Para ler o artigo, acesse

GALLO, S. and LIMONGELLI, R. M. “Infância maior”: linha de fuga ao governo democrático da infância. Educ. Pesqui. [online]. 2020, vol. 46, e236978. ISSN: 1678-4634 [viewed 17 December 2020]. https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046236978. Available from: http://ref.scielo.org/3xzs5f

Links Externos:

Educação e Pesquisa – EP: www.scielo.br/ep

Grupo de Pesquisa em Educação, Linguagem e Práticas Culturais: https://www.phala.fe.unicamp.br/

Rafael Limongelli: https://rafaelimao.wixsite.com/limao

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GALLO, S. and LIMONGELLI, R. Guerra ao governo democrático das infâncias [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2021 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2021/02/11/guerra-ao-governo-democratico-das-infancias/

 

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