Cristiane Miglioranza, jornalista, assistente editorial de Horizontes Antropológicos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
O processo editorial do número 59 de Horizontes Antropológicos, Covid-19. Antropologias de uma Pandemia, foi finalizado quando a declaração da pandemia do novo coronavírus pela Organização Mundial da Saúde (OMS) completou um ano. Inserido de forma inédita no cronograma de publicações do periódico, o especial apresenta alguns dos esforços da disciplina para situar, complexificar, descolonizar e abrir luzes analíticas para a compreensão deste evento crítico. “Dedicamos o número 59 às muitas memórias em torno de cada uma das perdas que resultam das pandemias que temos vivido com a Covid-19”, destacam os organizadores Jean Segata, Arlei Sander Damo, Ceres Víctora e Patrice Schuch.
Este número foi projetado como resposta imediata ao anúncio da pandemia mundial de Covid-19, em 11 de março de 2020. Trata-se de uma iniciativa conjunta dos editores e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Liderada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), a Rede mobiliza mais de noventa pesquisadoras e pesquisadores de diferentes áreas das Ciências Humanas, Sociais e da Saúde do Brasil e do exterior e produz pesquisas qualitativas que analisam o impacto da Covid-19 entre os profissionais de saúde e grupos vulneráveis em situação de isolamento social. São pesquisas que colocam em relevo a multiplicidade da pandemia, situando as suas implicações científicas, tecnológicas, sociais, políticas, históricas e culturais.
No texto de apresentação “Covid-19 e suas múltiplas pandemias”, os organizadores do número problematizam o termo “pandemia” e ressaltam a necessidade de compreendê-la para além dos indicadores e métricas internacionais de avaliação. “O volume de casos, as proporções entre quem destes adoeceu e precisou cuidados médicos e em que nível de atenção, o número de mortes, as intersecções de gênero e raça, o nível socioeconômico, a faixa etária, o grau de instrução ou o tipo de atividade profissional são algumas das informações quantificáveis fundamentais para a compreensão dos formatos epidemiológicos da crise. Mas é preciso ‘preencher’ esses dados com trajetórias, biografias e experiências individuais e coletivas que nos permitam dar conta das memórias e múltiplos sentidos deste evento crítico. O saber-fazer científico, qualitativo e político da Antropologia exerce um papel fundamental no processo de enfrentamento da pandemia”. Eles ponderam que pandemia é um evento múltiplo e desigual. “Há formas para se estabelecer alguns padrões, como por exemplo, a identificação do agente patógeno e a compreensão da infecção. No entanto, as distinções socioeconômicas, culturais, políticas, ambientais, coletivas ou mesmo individuais tensionam a homogeneidade do risco, da vulnerabilidade, da doença e do cuidado ‘vírus centrado’”, pontuam.
Os artigos deste número podem ser lidos a partir de três enfoques: múltiplas discursividades (iniciativas antropológicas para a compreensão dos modos de realização da pandemia inscritos em discursividades, escalas e sentidos em disputa); múltiplas experiências e múltiplas antropologias. Neste último, ecoam mais amplamente os interesses de uma antropologia pública (Biehl e Petryna, 2013 e Fassin, 2013) na medida em que esses artigos se comprometem com uma problemática de preocupação política coletiva e com a produção de conhecimentos que fomentem diálogos críticos com e para públicos diversos, com e sobre os próprios modelos de gerenciamento da pandemia.
Na chave ‘múltiplas discursividades’, o texto de Rosana Castro (pesquisadora independente), Necropolítica e a corrida tecnológica: notas sobre ensaios clínicos com vacinas contra o coronavírus no Brasil, explora o modo como o Brasil se configurou como um dos epicentros da pandemia mundial em 2020 e assim, um laboratório de vacinas o colocou na mira dos interesses da indústria farmacêutica. No eixo das ‘múltiplas experiências’, o artigo Xawara e a crise-covid: Os Yanomami, luto e luta, de Marcelo Moura Silva (PPGAS/Museu Nacional) e Carlos Estellita-Lins (Fiocruz), oferece uma reflexão sobre os efeitos da pandemia pelo novo coronavírus entre os Yanomami. Para além de uma contabilidade de adoecimentos e mortes, os autores discutem as tensões entre concepções Yanomami sobre a morte e origem das doenças e discursos e práticas epidemiológicas e de biossegurança no contexto da pandemia.
Já sob a ótica ‘múltiplas antropologias’, o trabalho de João Biehl (Princeton University), Descolonizando a saúde planetária, sintetiza um conjunto de críticas ao modo como a Saúde Global opera um perverso imperialismo tecnocrático que oblitera saberes e práticas locais. Percorrendo as possíveis contribuições da Antropologia e, sobretudo, mapeando a relevância dos seus instrumentos e conceitos na produção de estudos críticos acerca da saúde global, Biehl destaca a importância da noção de “horizontar”, de prospectar horizontes a partir do “escutar, ouvir e contar outras histórias”, transcendendo a repetição de registros oficiais, muitas vezes excludentes e homogeneizantes.
Referências
BIEHL, J. and PETRYNA, A. Critical global health. In: BIEHL, J. and PETRYNA, A. When People Come First: Critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013.
FASSIN, D. Why ethnography matters: on anthropology and its publics. Cultural Anthropology [online]. 2013, vol.28, no.04, pp.621-646 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1111/cuan.12030. Available from: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/cuan.12030
SEGATA, J., et al. Covid-19. Antropologias de uma pandemia. Horiz. antropol. [online]. 2021, vol.27 [viewed 18 August 2021]. Available from: https://www.scielo.br/j/ha/i/2021.v27n59/
BIEHL, J. Descolonizando a saúde planetária. Horiz. antropol. [online]. 2021, vol.27, n.59, pp.337-359 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/s0104-71832021000100017. Available from: http://ref.scielo.org/rdy8bh
CASTRO, R. Necropolítica e a corrida tecnológica: notas sobre ensaios clínicos com vacinas contra o coronavírus no Brasil. Horiz. antropol. [online]. 2021, vol.27, no.59, pp.71-90 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/s0104-71832021000100004. Available from: http://ref.scielo.org/3z3jgc
SILVA, M. M. and ESTELLITA-LINS, C. A xawara e os mortos: os Yanomami, luto e luta na pandemia da Covid-19. Horiz. antropol. [online]. 2021, vol.27, no.59, pp.267-285 [viewed 18 August 2021].https://doi.org/10.1590/s0104-71832021000100014. Available from: http://ref.scielo.org/6k8hqb
Para ler o artigo, acesse
SEGATA, J., et al. A Covid-19 e suas múltiplas pandemias. Horiz. antropol. [online]. 2021, vol.27, no.59, pp.7-25 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/s0104-71832021000100001. Available from: http://ref.scielo.org/jtcmbb
Links Externos
Arlei Sander Damo: http://lattes.cnpq.br/9535835543378743
Ceres Víctora: http://lattes.cnpq.br/7187238922547625
Horizontes Antropológicos – HA: https://www.scielo.br/ha/
Jean Segata: http://lattes.cnpq.br/8646469321774113
Museu Randyland: https://randy.land / https://www.facebook.com/randylandpgh/
Patrice Schuch: http://lattes.cnpq.br/1747539632586169
Rede Covid-19 Humanidades MCTI: https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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