A produção de pensamento e a escrita de mulheres a partir da experiência de “perda da mãe”

Elzahrã M.R.O. Osman, Pesquisadora-Tecnologista do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação (Inep-MEC), Brasília, DF, Brasil. 

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A metáfora materna na obra “Perder a mãe”, da historiadora estadunidense Saidiya Hartman (2021), será um leitmotiv a partir do qual nós derivaremos algumas reflexões sobre a catástrofe da perda – dos laços de parentesco, da terra, do passado mitificado, devido à ausência de memória e de tradições de um tempo mítico, quando era ainda possível ser feliz. A catástrofe da perda aqui se refere à tragédia concernente à “Passagem do Meio”, essa que vai referendar igualmente a obra de outro importante pensador, o caribenho Édouard Glissant, de quem emprestaremos a ideia de opacidade também como um mote para pensarmos o que resta depois da perda da mãe. 

A perda da mãe é a própria catástrofe em si – é, pois, a perda do lugar no qual a memória se constituiu e a partir de onde era possível recuperá-la, embora de forma espectral. Assim, o artigo Perder a mãe: uma categoria colonial? é inicialmente pensado de modo que, em um primeiro momento, pudéssemos desenhar a problemática filosófica em torno do gênero da matéria, ou seja, das inúmeras recorrências da matéria relativas ao feminino, não apenas na história da filosofia, mas também nos feminismos da diferença francês e italiano que o recuperam. 

Nesse primeiro momento, também é apresentada a metáfora da perda da mãe na obra de pensadoras negras estadunidenses, um exercício importante para situarmos a (im)possibilidade da ocorrência materialidade-maternidade em sociedades coloniais, onde o gênero não se estende às mulheres não brancas. 

Pintura em tons de cinza retratando uma mulher negra com cabelo preto escuro, vestida com um longo vestido branco, segurando um bebê de pele clara, também vestido de branco. Ao fundo, há uma palmeira e vegetação ao redor.

Imagem: SEGATO (2006).

Na segunda parte, valendo-me da literatura sobre os feminismos do Sul e decoloniais, bem como da tradição dos feminismos negros estadunidenses, procuro compreender a que corpo ou carne é possível recorrer ao pensarmos no gênero da matéria, essa que foi bastante associada à maternidade branca e a uma maternidade negra defectiva, conforme nos mostrarão, mais à frente, Saidiya Hartman e Hortense Spillers. 

Recorro, na terceira parte, à psicanálise lacaniana, que é o substrato de onde partem os feminismos em questão, mas também porque busco entender como se dão as inscrições (da letra) forcluídas em sociedades coloniais. Quer dizer, como é possível imaginarmos a produção de uma narrativa (escrita) realizada por mulheres que foram continuamente retiradas do âmbito do simbólico. 

O caminho escolhido para imaginarmos o que resta depois da perda da mãe será por meio do desenvolvimento de uma compreensão da perda (irrecuperável) da mãe e por um consequente processo ativo de mater-nagem dessa perda, como o próprio da opacidade. A metáfora materna será, por conseguinte, um dos modos possíveis de pensarmos tanto catástrofes coletivas quanto aquela relativa à castração, a qual nos obriga a lidar com a perda da mãe simbólica, a fim de nos constituirmos sujeitos de desejo derivativos – como tem de ser – dos processos de emancipação do desejo do outro. Assim, o texto transita da perda da mãe para a conformação de uma narrativa concernente à opacidade, uma mater-nagem ativa da opacidade, um apelo à escrita de mulheres.

Sobre Elzahrã M.R. O. Osman

É doutora em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora na área de Pensamento ético-político contemporâneo nas interfaces com a metafísica, a epistemologia e o pensamento contracolonial.

Referências

HARTMAN, S. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

SEGATO, R.L. O Édipo negro: colonialidade e forclusão de gênero e raça. In: SEGATO, R.L. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

SPILLERS, H.J. Bebê da mamãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, C., PATERNIANI, S.Z. and ARIAS, A. (org.). Pensamento radical negro. São Paulo: Crocodilo; N-1 Edições, 2021.

SILVA, D.F. Sobre a diferença sem separabilidade. In: VOLZ, J. and REBOUÇAS, J. (ed.). 32ª Bienal de São Paulo: incerteza viva. Catálogo da mostra. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016a.

GLISSANT, E. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

Para ler o artigo, acesse

OSMAN, E. Perder a mãe: uma categoria colonial? Trans/Form/Ação [online]. 2024, vol. 47, no. 2, e02400227 [viewed 30 July 2024].  https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n2.e02400227. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/PXVW6g8fK5RjqkFYrCmzdZG/

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

OSMAN, E.M.R.O. A produção de pensamento e a escrita de mulheres a partir da experiência de “perda da mãe” [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/09/11/a-producao-de-pensamento-e-a-escrita-de-mulheres-a-partir-da-experiencia-de-perda-da-mae/

 

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