Ari Pedro Oro, Professor, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Marcelo Ayres Camurça, Professor, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
Organizado por Ari Pedro Oro e Marcelo Ayres Camurça, o dossiê temático “A religião no espaço público” pretende contribuir para o avanço das reflexões sobre um dos temas mais complexos e controversos das ciências sociais.
A noção de espaço público/esfera pública na sua relação com a religião surge como um desenvolvimento do debate sobre o conceito de secularização, hegemônico nas ciências sociais até os anos 1970, no tratamento do papel da religião nas sociedades modernas. A antropologia despertou para esse debate, segundo a apreciação de Fenella Cannell (2010, p. 90-92), por meio da obra de Talal Asad (1993, 2003), que, ao introduzir o olhar antropológico em um domínio até então cativo da filosofia política e ciência política, termina por desconstruir as concepções essencialistas de “secular” e “secularização”, para mostrar o caráter histórico e contingente dessas realidades. Influenciado pelo comparativismo de Marcel Mauss, quando traça homologias entre diferentes modalidades e configurações de sociedades e o lugar da religião nas mesmas, assim como pelo pensamento de Michel Foucault, ao revelar a capacidade disciplinadora das subjetividades através dos poderes eficazes e constrangedores, chega ao seu questionamento acerca das distinções peremptórias entre uma instância religiosa, território de uma imposição tradicional e outra do político, região autônoma e espaço de decisões racionalmente escolhidas.
Se, como demonstrou Asad (2003), “religioso”, “secular” e sua diferenciação são construções produzidas na modernidade no intuito de institucionalizar essa modalidade de conceber a organização social, logo, uma boa “antropologia do secularismo” (e da religião) deveria detectar as condições de produção pelas quais essas noções ganharam legitimidade e solidez. Nesse sentido, faz-se mister analisar a circulação dos discursos que atravessam o domínio “público”, suas procedências, se provenientes de agentes “religiosos” e/ou “laicos”, seus entrecruzamentos, sua capacidade de alcance e de penetração nos lugares autorizados para o debate público, as novas significações que adquirem nessa transição entre espaços “originais” e “universais”, enfim, a condição de visibilidade e de legitimidade que ganham ou perdem pela sua competência em operar esses deslocamentos e assentamentos na “esfera” e “espaço público”.
Com este número do periódico Horizontes Antropológicos procuramos relançar e atualizar o estado da questão da presença pública das religiões no Brasil, mas também na América Latina e na Europa. Através dos artigos publicados revela-se uma multiplicidade de modus operandi pelos quais as religiões adentram o espaço público e se relacionam com o ambiente dito secular. E dentro dessa diversidade que diz respeito à presença pública da religião pode-se constatar um fenômeno de extrema complexidade, onde a religião pode funcionar tanto como um elemento positivo na configuração da sociedade civil quanto como um fator de embaraço às regras clássicas de funcionamento da esfera pública, ou, ainda, como um indicador de (re)amoldamento de novas formas de convivência e existência daquilo que foi tão rigidamente separado pelo “paradigma da secularização” moderna.
No texto intitulado “Le tournant substantialiste de la laïcité française”, Philippe Portier sustenta a ideia de que nas últimas décadas ocorreu uma reconfiguração da laicidade na França, tal como havia sido promulgada em dezembro de 1905. Se nessa ocasião foi estabelecida uma laicidade liberal, composta da separação entre Estado e cultos e da concessão às religiões da completa liberdade de organização e comunicação, nos últimos tempos constata-se uma mutação do comportamento estatal, que o sociólogo francês chama de “viragem substancialista da laicidade francesa”. O autor explora essa “virada” analisando a transformação da paisagem religiosa francesa, a evolução dos discursos políticos e a transformação das regras legais.
Por seu turno, Juan Scuro, em “Religión, política, espacio público y laicidad en el Uruguay progresista”, argumenta que o tema da laicidade tem ressurgido com força nos últimos anos no Uruguai, não sem controvérsias e polêmicas, envolvendo atores que há tempos estão em disputa no país, como a Igreja Católica e a Maçonaria. A análise recai sobre os últimos governos, de diferentes matizes ideológicos, instalados no país e vários episódios que envolvem disputas pela instalação de símbolos religiosos no espaço público que implicaram tensões e alianças entre religião e política.
O horizonte nacional não está ausente na sequência dos textos que compõem o dossiê, pois eles versam sobre situações brasileiras da religião no espaço público. Assim, o texto, de Paula Montero, Aramis Luis Silva e Lilian Sales, intitulado “Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública”, possui como foco a reconfiguração recente do secularismo brasileiro. Nele, os autores analisam três casos concretos: a cerimônia de inauguração do Tempo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, em 2014, no bairro do Brás, em São Paulo; a repercussão midiática dos discursos, e seus efeitos, da pastora transgênera Alexya Salvador, das Igrejas da Comunidade Metropolitana; e as controvérsias no Supremo Tribunal Federal envolvendo agentes religiosos e que giraram em torno da ADI 3510, que permitia o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, e da ADPF 54, que permitia a interrupção da gestação em mulheres grávidas de fetos anencéfalos. Os autores mostram como as dinâmicas implicadas nessas situações reconfiguram tanto a noção do “fazer religião” em público quanto à ordem jurídica secular. Além disso, os autores, a partir da publicização de experiências derivadas de problemas privados, sustentam “grande parte da eficácia da linguagem religiosa está menos na imposição de uma mensagem do que na qualidade e plasticidade de suas encenações nas diferentes arenas”.
Referências
ASAD, T. Genealogies of religion: disciplines and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore: John Hopkins University Press, 1993.
ASAD, T. Formations of the secular. Stanford: Stanford University Press, 2003.
CANNEL, F. The anthropology of secularism. Annual Review of Anthropology, v. 39, p. 85-100, 2010. ISSN: 0084-6570 [reviewed 20 December 2018]. DOI: 10.1146/annurev.anthro.012809.105039. Avaliable from: https://www.annualreviews.org/doi/10.1146/annurev.anthro.012809.105039
Para ler os artigos, acesse
MONTERO, P., SILVA, A. L. and SALES, L. Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública. Horiz. antropol. [online]. 2018, vol.24, n.52, pp.131-164. ISSN 0104-7183. [viewed 14 Junuary 2019]. DOI: 10.1590/s0104-71832018000300006. Available from: http://ref.scielo.org/qryx59
PORTIER, P. Le tournant substantialiste de la laïcité française. Horiz. antropol.[online]. 2018, vol.24, n.52. ISSN 0104-7183. [viewed 14 Junuary 2019]. DOI: 10.1590/s0104-71832018000300002. Available from: http://ref.scielo.org/5kfgmr
SCURO, J. Religión, política, espacio público y laicidad en el Uruguay progresista.Horiz. antropol. [online]. 2018, vol.24, n.52, pp.41-73. ISSN 0104-7183. [viewed 14 Junuary 2019]. DOI: 10.1590/s0104-71832018000300003. Available from: http://ref.scielo.org/hyb8d7
Links externos
Horizontes Antropológicos – HA: www.scielo.br/ha/
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