Jimena Felipe Beltrão, Jornalista, Ph.D. em Ciências Sociais (University of Leicester, Reino Unido), editora científica do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, PA, Brasil
Silvia de Souza Leão, Jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA, Brasil
O Museu Paraense Emílio Goeldi, instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações reúne coleções arqueológicas de testemunhos de diferentes culturas que se desenvolveram na Amazônia em período pré-colonial constituindo, assim, um instrumento inesgotável para a pesquisa arqueológica sobre este período.
Para Cristiana Barreto, arqueóloga e editora associada do periódico, a pesquisa se beneficia das coleções arqueológicas contidas no Museu pois são de fundamental importância, já que salvaguarda as coleções de Antropologia, de Arqueologia e de Linguística, que além da sua relevância científica, têm grande importância sociocultural e política para os povos indígenas e comunidades tradicionais, já que são registros permanentes de suas memórias e modos de vida.
“É sem dúvida a coleção que cobre a maior diversidade de culturas ali representadas. Costumo dizer que a reserva do Museu é como uma biblioteca, mas em vez de livros, temos peças arqueológicas que nos contam diferentes histórias sobre o passado. São tanto referências importantes para a pesquisa que são constantemente consultadas por arqueólogos, como também vetores de novos conhecimentos na medida em que é sempre possível estudá-las a partir de novas metodologias ou abordagens. Por isso o Museu Goeldi recebe sempre muitos pesquisadores que querem consultar ou analisar peças das coleções”, explica a pesquisadora.
O BMPEG. Ciências Humanas se concentra em conteúdos sobre a região amazônica, mas não só. O periódico publica artigos sobre outras áreas além da Amazônia sempre e quando as análises apresentem relevância teórica e/ou metodológica mais abrangentes e que contribuam, no espírito científico, para os debates atuais de uma dada disciplina no Brasil e no mundo. Isso é particularmente verdadeiro para a Arqueologia. Marcony Lopes Alves, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, estuda as cerâmicas Konduri (XI-XV AD) e Santarém (XIII-XVI AD), pertencentes à Tradição Inciso Ponteada, encontradas em áreas vizinhas ao baixo Amazonas.
Alves conta que, desde a graduação, estuda coleções de cerâmicas arqueológicas provenientes do baixo amazonas no Estado do Pará. Segundo relata, “Essas coleções estão depositadas em diferentes museus do país. No artigo Para além de Santarém: os vasos de gargalo da bacia do rio Trombetas, eu apresento uma comparação entre os vasos de gargalo contidos em Santarém e uma série de fragmentos encontrados associados a cerâmica Konduri na bacia do Rio Trombetas. A partir dessa comparação eu consegui constatar que existia uma forma variante a vasos de gargalo associadas ao estilo Konduri. Os estilos Santarém e Konduri são datados do mesmo período, séculos XI ou XIII até o século XVI da nossa era” (BARATA, 1952). Veja depoimento a seguir de Marcony Lopes Alves.
Coleções — Cristiana lembra que, a Coleção Arqueológica do Museu Goeldi no que tange as peças da Culturas Marajoara, Santarém, Konduri, como as pesquisadas por Marcony, são tão importantes que chegaram a ser tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, na década de 1940. “Pela antiguidade da instituição o Museu abriga coleções muito numerosas, sobretudo de cerâmicas arqueológicas das culturas Marajoara, Santarém e Konduri, e Maracá, com muitas peças inteiras ou semi-inteiras com um potencial muito grande para ações museológicas e educativas. A longa história de colecionamento do Museu inclui coleções históricas expressivas, como a doada por Frederico Barata de cerâmicas Santarém, ou a coleção Curt Nimuendaju resultante de suas pesquisas no baixo Amazonas. Por este caráter histórico de colecionamento e pela exuberância das peças, a coleção foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na década de 1940,” explica.
Foi, então, com essa tradição de catalogar as peças de várias coleções distintas, que o Museu Goeldi só aumentou seu acervo com o passar do tempo, principalmente a partir da década de 1960. “Por exemplo, nestes últimos anos foi possível identificar um novo complexo cerâmico no baixo Amazonas, chamado Koriabo, antes tido como restrito apenas à região das Guianas”, explica Cristiana. A pesquisadora lembra que, durante evento científico, organizado pelo Museu Goeldi, nesse mesmo período, participantes discutiram e consultaram as coleções da instituição.
A partir dos anos 1950, o Museu começou a “seguir a metodologia de classificação arqueológica das cerâmicas em grandes tradições pan-amazônicas, dentro das quais podem ser diferenciadas várias Fases, que representam culturas locais. Assim, o material mais diagnóstico de cada Fase foi acondicionado na reserva em “coleções tipo”. Hoje, se um pesquisador quer estudar uma determinada Fase ou Tradição ele acessa diretamente estas “coleções tipo” que lhe dá rapidamente um resumo ou uma síntese do que a define, sem ter que olhar todo o material coletado”, relata a pesquisadora.
Além das cerâmicas e das peças em pedra lascada ou polida, há uma enorme quantidade de vestígios arqueológicos que têm menos visibilidade museológica: restos humanos (ossos e dentes), vestígios botânicos e faunísticos, amostras de carvão para datação e amostras de solos provenientes das escavações. Atualmente, o acervo arqueológico da Reserva Técnica Ferreira Mário Simões (RTMS) possui aproximadamente 120 mil objetos (inteiros e fragmentados) e aproximadamente 2 milhões de fragmentos procedentes de diversas regiões da Amazônia.
O acesso às coleções do Museu Goeldi já é possível há alguns anos. A Reserva Técnica Mário Ferreira Simões que abriga as coleções arqueológicas do Museu Goeldi recebe a visita em pequenos grupos, mas é necessário agendamento prévio com a curadoria. Para se obter acesso aos materiais para pesquisa, o interessado deve contatar a curadoria e apresentar seu projeto de pesquisa e justificativa para análise. O contato com a curadoria pode ser feito pelo email: curadoria.arqueologia@museu-goeldi.br
Cultura Santarém: arqueologia que vem do Tapajós – Em artigo publicado em 2018, cujo título “Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas”, Alves trata precisamente do uso de peças de acervo para identificar elementos comuns entre cerâmicas de distintas culturas.
No trabalho, o arqueólogo destaca elementos de semelhança em vasos de gargalos das culturas Santarém e Konduri, onde, a partir de relatos etno-históricos, Marcony pode explicar que não se sabe ao certo como se deram essas interações, porém “fala-se em troca, comércio, permuta de uma margem a outra”. “Esse compartilhamento de uma morfologia bem específica, esse vaso santareno que apresenta figuras zoomórficas muito características, indica alguma forma de interação entre os produtores da cerâmica Konduri e os produtores da cerâmica de Santarém”, esclarece o autor (NIMUENDAJÚ, 1949; GUAPINDAIA; LOPES, 2011).
Para Cristiana Barreto, arqueóloga e editora associada, o trabalho de Marcony se torna possível pela preservação das peças analisadas. “A vantagem de se reunir cumulativamente muitas e grandes coleções sob um só teto é justamente a possibilidade de análises comparativas. O estudo do autor se valeu da grande quantidade e da condição excepcional de preservação de vasos de gargalo, um item típico da cultura Santarém, para comparar as variações estilísticas através dos territórios tradicionalmente conhecidos para os complexos cerâmicos Santarém (na foz do Tapajós) e Konduri (na região do Rio Trombetas). Com isso questões sobre a relação entre estes dois complexos puderam ser melhor compreendidas, sobretudo em termos do que eles representam como unidades socioculturais distintas, mas semelhantes,” avalia a arqueóloga.
Os vasos de gargalo de Santarém estudados por Alves apresentaram características bem padronizadas, com vasos medindo de 10 a 30 cm de altura e capacidade volumétrica entre 250 e 670 ml. “[…] Essas vasilhas, a julgar por exemplares fragmentados, combinam um bojo feito por acordelamento e modelagem, afixado a outras partes completamente modeladas” (ALVES, 2018, p. 15). O autor do estudo também informa que a maioria dos vasos dos quais se conhece a procedência foi coletada no sítio arqueológico Aldeia (12 peças), onde hoje se situa parte da atual cidade de Santarém.
Durante o percurso da pesquisa realizada por Alves (2018, p. 23), há histórias de vasos remontados por indígenas. “[…] O vaso encontrado no rio Acapu pertence à coleção Nimuendajú, do Museu Paraense Emílio Goeldi, é um dos menores vasos de gargalo conhecidos (55 ml de capacidade volumétrica) […].” Já o vaso encontrado dentro do rio Mapuera (alto curso), nas proximidades da aldeia Tumiurú, na Terra Indígena Trombetas Mapuera, foi remontado pelos indígenas com massa adesiva epóxi. A ‘cabeça de urubu’ estava solta quando a foto foi tirada”, explica na legenda da imagem usada pelo arqueólogo (ALVES, 2018).
Alves (2018) destaca, em seu artigo, que “O conhecimento atual sobre a arqueologia do baixo Amazonas ainda é muito desigual e profundamente baseado no estudo de coleções museológicas. As coleções que nós estudamos oferecem apenas uma ‘pista’ para as futuras pesquisas arqueológicas baseadas em escavações sistemáticas. Ainda há muito o que ser feito” (p. 33).
Cristiana Barreto também reforça que a coleção do Museu Goeldi tem enorme potencial para estudos iconográficos e estilísticos, com objetos inteiros ou semi-inteiros e têm sido cada vez mais objeto de pesquisa de arqueólogos que trabalham nesta linha. “Recentemente desenvolvi um projeto comparando objetos antropomorfos, estatuetas e urnas funerárias, de diferentes complexos cerâmicos para, através das diferentes formas de representação do corpo, melhor entendermos como as diferentes identidades eram construídas no passado”.
Referências
BARATA, F.. A arte oleira dos Tapajó II: os cachimbos de Santarém. Revista do Museu Paulista, v. 5, p. 183-198, 1952.
GUAPINDAIA, V. and LOPES, D. Estudos arqueológicos na região de Porto Trombetas, PA. Revista de Arqueologia, v. 24, n. 2, p. 50-73, 2011. E-ISSN: 1982-1999 [viewed 9 November 2018]. DOI: 10.24885/sab.v24i2.327. Available from: https://revista.sabnet.com.br/revista/index.php/SAB/article/view/327
NIMUENDAJÚ, C. Os Tapajó. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia, v. 10, p. 93-106, 1949. Available from: http://repositorio.museu-goeldi.br/handle/mgoeldi/1182
Para ler artigo, acesse
ALVES, M. L. Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.1, pp.11-36. ISSN 1981-8122. [viewed 26 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000100002. Available from: http://ref.scielo.org/7m5956
Links externos
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: www.scielo.br/bgoeldi
Boletim: www.editora.museu-goeldi.br/humanas
Boletim no Issuu: www.issuu.com/bgoeldi_ch
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Sobre Marcony Lopes Alves
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. É membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Tecnologia e Território (LINTT) no MAE-USP e colaborador do Centro Especializado em Arqueologia Pré-histórica do Museu de História Natural da UFMG. Sua pesquisa versa sobre o estilo Konduri na região do Baixo Amazonas. Atua principalmente nos seguintes temas: Arqueologia Pré-Colonial, Arqueologia Amazônica, Tecnologia Cerâmica, Tecnologia Lítica, Arqueologia Histórica, cachimbos históricos. E-mail: marcony.alves@yahoo.com.br
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