Laeticia Jensen Eble, Doutora em literatura e editora-executiva da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Palmas, TO, Brasil
Lucía Tennina é professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, tradutora e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (CONICET). É formada em Letras (UBA), mestre em Antropologia Social (UNSAM), doutora em Letras (UBA) e pós-doutora em Estudos Culturais (UFRJ). Como crítica literária e antropóloga, pesquisou e analisou profundamente as produções literárias das periferias de São Paulo, tanto no que diz respeito às publicações em livros quanto aos saraus. Publicou Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo (TENNINA, 2017), a antologia Saraus: movimiento/poesía/periferia/São Paulo (TENNINA, 2014) e, ao lado de Érica Peçanha, Mário Medeiros e Ingrid Hapke, o livro “Polifonias marginais” (TENNINA et al., 2016), entre outros títulos. Juntamente com Érica Peçanha, foi organizadora do dossiê do n. 49 da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (2016), voltado para o tema Literatura e Periferia.
Além de ser autora de inúmeros artigos e organizadora de diversas coletâneas, Tennina trabalha também como tradutora literária, tendo traduzido do português para o espanhol vários autores contemporâneos brasileiros, tais como Ferréz, Marcelino Freire, Lourenço Mutarelli, Augusto Boal entre outros. Atua ainda como curadora em mostras e feiras literárias.
De acordo com dados do Google Analytics, seu artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos” (TENNINA, 2013), foi citado 18 vezes entre os anos de 2015 a 2018, em periódicos brasileiros e estrangeiros, sendo o artigo mais citado da Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (ELBC) nos últimos cinco anos. Consideramos oportuno, portanto, revisitar o artigo para conversar com a autora e explorar o tema, que tem sido objeto de estudo de um número crescente de pesquisadores em literatura brasileira contemporânea no Brasil e no exterior.
1. Fale um pouco sobre como o artigo se insere no seu percurso acadêmico. Como surgiu seu interesse pelos saraus, o que te motivou a trabalhar com eles como objeto de pesquisa?
Minha formação é em Letras, mas sempre senti (e sinto ainda) um profundo incômodo em relação a certos vícios dessa área. Um incômodo derivado do uso de um corpus crítico que costuma ser profundamente homogêneo. Incômodo diante de uma metodologia que se mostra insuficiente para dar conta de certas manifestações literárias. Incômodo diante do consenso que existe em relação a uma ideia de literatura, a qual desloca as manifestações que não correspondem às suas exigências para o campo do “popular” ou do “social”. E incômodo, por fim, diante da opinião pouco fundamentada sobre aquelas produções que não correspondem ao esquema já dado previamente no sentido de estabelecer o que deveria ser, fazer e produzir um “escritor” ou uma “escritora”. Para enfrentar esses incômodos, desenvolvi a pesquisa sobre os saraus com o objetivo principal de propor, demonstrar e fundamentar, através da apresentação de uma cena e de também de um conjunto de análises específicas, o potencial crítico da literatura dos saraus das periferias de São Paulo, e, com isso, tentar trazer uma contribuição para as reflexões mais recentes dos estudos literários em um nível conceitual, metodológico e disciplinar.
2. Em seu artigo, você fala da ressignificação do espaço “periferia”, da conformação de uma geografia afetiva, que ocorre com a realização dos saraus e nos poemas neles declamados. Como você acha que isso colabora para o empoderamento dos sujeitos periféricos?
A existência dos saraus nos bairros das periferias contribui principalmente para a autoestima dos moradores. É importante compreender que a ideia central que estrutura as produções dos saraus vincula-se a uma ideia de literatura ligada ao cultivo das capacidades e motivações individuais, censuradas geralmente pela ideia de carência, que costuma ser associada à condição de morar nos bairros mais pobres e estigmatizados da cidade. Os saraus funcionam, nesse sentido, como um artefato cultural influente na potencialidade de uma vida na periferia. Existem muitos testemunhos de frequentadores que, antes dos saraus, tentavam não mencionar o seu bairro de residência e, hoje em dia, sentem-se orgulhosos de falar “moro perto do Sarau da Cooperifa” ou “moro perto do Sarau do Binho”. A história de vida dos participantes adquire nesse contexto um perfil cultural, e os elementos que antes eram estigmas viram recursos simbólicos positivamente sancionados que conformam, em conjunto, uma imaginação de comunidade ligada à história de vida e ao território.
3. Ao discutir no artigo a questão de como se dão os aplausos durante os saraus, você analisa também a performance do público. E aí você cita uma fala do Sérgio Vaz, que diz “a gente procura sempre não aplaudir mais um do que o outro, não existe o melhor da noite”, demonstrando uma ação de construção de uma identidade coletiva. Percebe-se aí então uma diferença importante em relação aos slams, em que há uma competição, uma individualização. Nesse sentido, você acha que há um antagonismo entre esses dois espaços de expressão?
Os slams, nos últimos anos, viraram aliados dos saraus. Muitos dos participantes que se formaram nos saraus começaram a concorrer ou criar slams e começou um fluxo de frequentadores de um para outro que evidencia uma ação conjunta. Há também muitos slams temáticos, ligados à negritude, periferia, feminismo, entre outros pontos que atingem e são abordados também nos saraus das periferias. Existe, sem dúvida, uma diferença central entre estas duas práticas, que parte do fato de o sarau ser um espaço de encontro e declamação, enquanto os slams são competições de rima. Nesse sentido, as fórmulas rituais de um e outro são diferentes, entre elas a função do aplauso. Nos saraus, como é analisado no artigo, as palmas estão ligadas à ideia de respeito e não somente de juízo estético, e nos slams funcionam como um marcador que define o ganhador e o perdedor, por mais que também seja um estímulo que alenta os participantes. O interessante de tudo isso tem a ver com que tanto os saraus quanto os slams nos levam a repensar certas categorias que a nossa trajetória letradocêntrica não questionava, como o vínculo entre os aplausos e o juízo estético e nos leva a pensar em outras formas de manifestação desse juízo, que nunca deixa de existir.
4. Ao final do artigo, você comenta que os saraus já adquiriram uma identidade própria, e por isso são capazes de mudar seu lugar de realização sem perder suas principais características, superando até mesmo a territorialidade da periferia. Você colocou no artigo a seguinte pergunta: “qual rumo terá o movimento dos saraus da periferia frente a esse tipo de deslocamentos?” Então pergunto: de lá para cá, você acha que houve um alargamento dos limites da periferia? E na atual situação político-econômica do Brasil, quais são as perspectivas para os autores da periferia?
Desde o momento no qual foi publicado o artigo, em 2013, até agora, o movimento dos saraus das periferias se expandiu enormemente a partir de São Paulo para outras urbes brasileiras, ampliando as coordenadas do circuito e as características da cena. A produção dos saraus também atravessou fronteiras: em 2014, por exemplo, a cidade convidada para a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires (importante evento editorial latino-americano) foi São Paulo, e a Prefeitura da cidade, por meio da Biblioteca Mário de Andrade, decidiu escolher como participantes os poetas dos saraus das periferias. Nessa oportunidade viajaram 80 poetas representando 16 saraus de São Paulo. Nesse mesmo ano, alguns desses poetas participaram da Feira Internacional del Libro del Zócalo de México; no ano seguinte, outros foram para a Bienal do Livro de Paris; e dois anos mais tarde, para a Primavera del Libro, em Santiago de Chile… e poderia continuar. Em cada viagem, paralelamente às atividades oficiais, os poetas realizaram ações nas periferias dessas cidades, como saraus, oficinas, rodas de conversa e troca de livros. Evidentemente, o trabalho de culturalização das periferias por meio da literatura acaba transpassando os limites não somente dos bairros e das cidades, mas também da nação, gerando, assim, guardadas as devidas diferenças culturais e de concepção do espaço urbano, uma identificação entre os moradores das periferias urbanas do mundo inteiro.
O que vai acontecer com esses autores no Brasil de hoje? Se pensarmos em termos de participação nas políticas públicas, vai ser difícil. Sem dúvida, a expansão dos saraus faz parte de uma realidade política ligada à gestão Lula, com Gilberto Gil e Juca Ferreira na área de cultura (2003-2008), na qual, paralelamente às políticas a favor do mercado, implementaram-se importantes políticas culturais de reconhecimento da diversidade e de fomento do desenvolvimento comunitário. Essa gestão foi central no estabelecimento de uma mudança de paradigma em relação às políticas públicas que têm a ver, em termos de García Canclini (1987), já não com uma ideia de “democratização cultural”, isto é, possibilitar o acesso a determinados bens culturais, mas “democracia cultural”, que significa igualdade de possibilidades de produção e distribuição das culturas. Nesse aspecto, a mudança já está sendo radical desde antes do golpe, inclusive, a partir dos cortes e da falta de trabalho. De qualquer maneira, é importante lembrar que a literatura das periferias começou a ganhar voz e ouvidos nos anos 1990, em pleno neoliberalismo. A literatura das periferias não depende das políticas públicas, ela tem vida própria e hoje em dia tem mais leitores e ouvintes que valorizam e se interessam por essas produções. Com isso podemos pensar que não somente as vozes dos saraus não vão se silenciar, mas que vão ser mais fortemente articuladas.
5. Sobre o que você está pesquisando atualmente? Você continua trabalhando com os saraus de alguma forma? Gostaria de fazer alguma sugestão de leitura ou de metodologia para quem está começando agora a pesquisar sobre esse tema?
Minha pesquisa atual foca-se nas formas de ação da crítica literária em relação às produções de literatura contemporânea. Nesse sentido, interesso-me por certos críticos e críticas literárias que pensam sua atividade não somente como um trabalho de análise de textos, mas também de gestão cultural, de reflexividade etnográfica, de curadoria e de administração. Acho necessário repensar hoje sobre nosso papel e nossa metodologia. Em tempos de desvalorização de nossa atividade e de cortes, é importante evidenciar nossa atividade como necessária e interventora no campo social e humano. Nesse sentido, acho que resulta imprescindível a leitura da produção de Regina Dalcastagnè (2005, 2008, 2012), que vem realizando um trabalho importantíssimo vinculado à democratização do olhar e uma ação sobre as letras.
Referências
CANCLINI, Néstor García. Políticas culturales en América Latina. México: Grijalbo, 1987.
DALCASTAGNÈ, R. A personagem do romance brasileiro contemporâneo (1990-2004). Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 26, p. 13-71, 2005. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9077
DALCASTAGNÈ, R. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 31, p. 87-110, 2008. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434
DALCASTAGNÈ, R. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.
ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA – ELBC. Literatura e Periferia, n. 49, 2016. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/issue/view/898
TENNINA, L. Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 42, p. 11-28, 2013. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. DOI: 10.1590/S2316-40182013000200001. Available from: http://ref.scielo.org/rbw7vj
TENNINA, L (Org.). Saraus: movimiento/poesía/periferia/São Paulo. Buenos Aires: Tinta Limón, 2014.
TENNINA, L. et al. Polifonias marginais. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2016.
TENNINA, L. Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Porto Alegre: Zouk, 2017.
Links externos
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea – ELBC: www.scielo.br/elbc
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea – www.gelbc.com
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Sobre Laeticia Jensen Eble
Laeticia Jensen Eble é doutora em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília com a tese “Escrever e inscrever-se na cidade: um estudo sobre literatura e hip-hop”. É editora-executiva da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea.
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