João Márcio Mendes Pereira é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e coordenador da Pós-Graduação em História na mesma instituição. É bolsista Jovem Cientista da FAPERJ. É autor de “O Banco como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008)” (Civilização Brasileira, 2010) e de “A política de reforma agrária de mercado do Banco Mundial “(Hucitec, 2010). Publicou ainda diversos capítulos e artigos publicados em revistas acadêmicas no Brasil e no exterior em espanhol e inglês, decorrentes de projetos de pesquisa financiados pelo CNPq e pela FAPERJ.
Varia Historia publicou, em seu número 58 de janeiro/abril de 2016, o artigo “Modernização, combate à pobreza e mercado de terras: Uma análise das políticas do Banco Mundial para agricultura e desenvolvimento rural (1944-2003)”, de autoria de João Márcio Mendes Pereira. Para melhor divulgação entre leitores internacionais, o artigo tem versão online bilíngue, com tradução para o inglês feita por Eoin O’Neill.
O artigo analisa a atuação dessa entidade desde os anos 1960, sob uma perspectiva política, no que se refere especialmente à agricultura e desenvolvimento rural (ADR). Sem considerar as ações do Banco Mundial (BM) como mera imposição externa e unilateral, Pereira alerta sobre a importância e o papel dos atores políticos domésticos em cada país assistido.
Segundo o autor, a história do BM passou por diferentes fases no tratamento da ADR: entre 1940 e 1968, o engajamento da instituição foi tardia; de 1968 a 1980, houve uma verdadeira “era de ouro” do combate à pobreza rural; entre 1980 e 1984 o liberalismo predominou e estreitou as ações na área; e de 1990 em diante, inaugurou-se um reengajamento na questão. Como balanço, Pereira diz que o grande limite da eficácia do combate à pobreza rural reside no caráter intocado da concentração da propriedade da terra.
Em entrevista concedida à Varia Historia, o professor discute a contribuição do seu artigo no âmbito dos estudos já realizados, o uso de fontes documentais, e confere especial atenção à chamada “idade do ouro” na ADR pelo Banco Mundial, entre 1968-1980.
1. O senhor vem pesquisando o Banco Mundial há uma década, e já tem publicações importantes sobre o tema. Qual o diferencial desse artigo recentemente publicado na Varia, e o que ele acrescenta à sua contribuição?
Sem pretensões de exaustividade, o artigo oferece ao leitor uma análise de conjunto da política do Banco Mundial para agricultura, desenvolvimento rural e acesso à terra nos primeiros 60 anos dessa instituição. Chamo atenção para o fato de que o Banco foi o principal financiador multilateral dos processos de modernização conservadora da agricultura na década de 1970 nos países periféricos, e segue nessa condição desde os anos 1990. Em geral, na literatura especializada as análises sobre a atuação do Banco no setor rural tendem a separar questão agrícola e questão agrária/fundiária, algo que o artigo busca evitar. O trabalho faz parte de um programa de pesquisa mais amplo, que parte da história mais geral da entidade ― que tratei no livro “O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008)”, publicado pela Civilização Brasileira em 2010 ― para tentar entender a atuação específica do Banco em diversos setores (como educação, meio ambiente, reforma do Estado e, no caso deste artigo, agricultura e desenvolvimento rural).
2. As fontes primárias utilizadas na pesquisa são todas do próprio Banco Mundial. Qual sua metodologia para a crítica dessas fontes, e como evitar que a lógica do próprio Banco influencie suas análises da atuação dessa instituição?
Excelente pergunta. Uma das muitas e imensas dificuldades de se pesquisar uma instituição do porte do Banco Mundial consiste no fato de que se trata de um ator ao mesmo tempo político, intelectual e financeiro. Anualmente, milhares de livros, artigos científicos, manuais e guias de políticas públicas são produzidos pelo staff da instituição a respeito de todas as áreas e atividades ligadas ao “desenvolvimento” (como infraestrutura, energia, política econômica, educação, saúde, habitação, meio ambiente, desenvolvimento urbano e rural, administração pública, reconstrução nacional pós-conflito, etc.). Suas publicações costumam ser tomadas como referências autorizadas em cursos de Economia em inúmeros países. Na cobertura de diversos assuntos é recorrente constatar a ampla audiência que os grandes veículos de comunicação dão ao Banco Mundial enquanto formulador de pesquisas e dados econômicos e sociais autorizados. A mesma influência e dependência podem ser constatadas entre formuladores de políticas e gestores públicos nos países considerados “pobres” e “em desenvolvimento” ― como o próprio Banco os denomina, aliás. Para a elaboração de uma gama ampla e variada de pesquisas acadêmicas é frequente a dependência em relação aos indicadores produzidos pelo Banco, em regime de quase monopólio. Análises comparativas internacionais feitas pela instituição não têm concorrência à altura no meio acadêmico. Tudo isso para dizer que o Banco é, ao mesmo tempo, produtor de dados primários sobre o desenvolvimento em geral (saúde, educação, economia, etc.), interlocutor com larga incidência no campo intelectual, financiador de pesquisas e consultorias externas e elaborador e difusor de políticas aos Estados nacionais.
Por tudo isso, é necessário ter em conta que o Banco desenvolve um léxico próprio, sob a aparência da melhor pesquisa técnica. Ao contrário do seu discurso de autolegitimação, não se trata de uma instituição “politicamente neutra” (como estabelece o seu estatuto de fundação). O pesquisador tem a obrigação de desnaturalizar e desconstruir o vocabulário e o universo conceitual manejados pelo Banco. Sem isso, fica difícil avançar no conhecimento.
Outro passo importante consiste em trabalhar com uma base documental larga e variada, abrangendo referências da instituição de natureza distinta. Por exemplo: relatórios setoriais, produzidos com periodicidade irregular, que condensam a fundamentação teórica para determinada área do desenvolvimento; relatórios anuais, que permitem identificar como a agenda do Banco se traduziu em operações financeiras e não financeiras; a partir de 1978, os Relatórios sobre o Desenvolvimento Mundial, publicação anual mais importante da instituição, que apresentam um panorama da economia internacional, reúnem o conjunto das orientações do Banco para a formulação de políticas nos Estados clientes e buscam fundamentá-las com argumentos técnicos e econômicos; discursos dos presidentes do Banco, proferidos nas reuniões anuais da instituição celebradas em conjunto com o Fundo Monetário Internacional e em diversas outras ocasiões, que resumem as grandes linhas de ação da entidade a cada ano; livros e artigos sobre o tema de autoria de altos funcionários da entidade, publicados pelo próprio Banco ou em revistas acadêmicas de prestígio internacional. Lidar com essa diversidade ajuda a entender melhor as nuances, as contradições, as filiações teóricas e os compromissos assumidos pelo Banco com atores estatais e não estatais. Portanto, ajuda a compreender melhor os interesses e objetivos em jogo.
3. O senhor mostra como muitas ações do Banco Mundial pautaram-se pela temática do combate à pobreza, no período 1968-1981, e que isso se relacionou com os impasses gerados pela guerra fria. Quais os limites encontrados nas políticas dessa instituição para a superação real da pobreza no campo?
Em poucas palavras, o não enfrentamento da concentração da propriedade da terra nos países do Sul global. Entre 1968 e 1981, durante a gestão de Robert McNamara ― ex-presidente da Ford Motor Company e ex-Secretário de Defesa dos EUA ―, o Banco passou a fazer proclamações sobre a necessidade de reformas agrárias, associando desenvolvimento, segurança do “mundo livre” e filantropia, às vezes com certa estridência. Porém, efetivamente, nunca priorizou a democratização da propriedade da terra (e todas as implicações políticas, sociais e econômicas que ela pode acarretar) na sua agenda. Ao contrário, a saída proposta pelo Banco para os “pobres do campo” passou pela modernização conservadora da agricultura e a confiança no “efeito derrame” que o crescimento econômico, em algum momento, supostamente produziria, complementada com integração subordinada de frações do campesinato a esse processo. Para a grande maioria dos trabalhadores sem terra e assalariados rurais, o Banco sempre teve pouco a dizer.
Do início dos anos 1980 até meados da década de 1990, a atuação do Banco se concentrou em induzir a liberalização econômica nos Estados clientes e o desmonte de instituições ligadas à era desenvolvimentista, a partir de empréstimos de ajuste estrutural e setorial, além de muita pressão política e condenação intelectual a toda e qualquer regulação econômica estatal. O “combate à pobreza”, enquanto discurso e prática, desapareceu do vocabulário da entidade. Somente depois de 1987, por diversas razões, é que cresceu a preocupação com os “custos sociais” do ajuste, retomando os projetos de “combate à pobreza” no campo, só que agora, segundo o princípio da focalização e da provisão de mínimos sociais.
A partir de 1990, a “terra rural” assume uma importância crescente na arena política internacional ― enquanto, estranhamente, o tema perde relevância na pesquisa em ciências humanas em diversos países. O que levou a isso? Em primeiro lugar, a evidência de que a pobreza segue sendo um fenômeno maciçamente rural, dado que cerca de 3/4 dos pobres do mundo vivem e trabalham no campo. Segundo, a evidência de que conflitos armados e guerras civis em diversos países têm raízes na questão agrária. Terceiro, o impacto da ação política de movimentos camponeses e indígenas em países como México e Brasil, por exemplo. Em quarto lugar, as pressões crescentes de grandes empresas pelo controle sobre as terras rurais para produção de commodities agrícolas e exploração de recursos florestais, minerais e água. Por fim, a liderança política, intelectual e econômica do Banco Mundial na rede de assistência multilateral ao desenvolvimento. Desde então, o fato de o Banco reconhecer progressivamente que a desigualdade social e a pobreza no campo estão ligadas ao grau de concentração da propriedade da terra ― embora “naturalize” o controle oligopólico da produção por empresas transnacionais ― não resultou no apoio efetivo a programas de reforma agrária redistributiva; ao contrário, como procurei argumentar no artigo, até o início da década de 2000.
Contato
João Márcio Mendes Pereira – E-mail: joao_marcio1917@yahoo.com.br
Para ler o artigo, acesse
PEREIRA, J. M. M. Modernization, the Fight Against Poverty, and Land Markets: An Analysis of the World Bank’s Agriculture and Rural Development Policies (1944-2003). Varia hist. [online]. 2016, vol.32, n.58, pp. 225-258. 10.1590/0104-87752016000100010. Available from: http://ref.scielo.org/k8jfdp
Link externos
Varia Historia – VH – www.scielo.br/vh
Sobre Regina Horta Duarte
Regina Horta Duarte é professora Titular de História da Universidade Federal de Minas Gerais, e pesquisadora nível 1 A do CNPq. Foi editora chefe da Revista Brasileira de História (2006-2007). Em 2008, ocupou vaga de Professora Residente no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG. Participou da fundação da Sociedade Latino Americana Y Caribeña de Historia Ambiental (SOLCHA), e foi eleita para a primeira Junta Diretiva. Permaneceu na Junta Diretiva dessa entidade como editora-chefe da revista Historia Ambiental Latinoamericana Y Caribeña (HALAC), publicação científica inaugurada em 2011 até setembro de 2014. Em abril de 2013, atuou como Visiting Reseach Professor na University of Texas at Austin. É Editora Chefe da revista Varia Historia desde janeiro de 2015. Publicou os livros “A Imagem Rebelde”(1991), Noites Circentes (1995), História e Natureza (2005), Biologia Militante (2010), e tem no prelo o livro Activist Biology, que será publicado este ano nos EUA. Publicou em periódicos de importância como Latin American Research Review, Journal of Latin American Research, Environmental and History, ISIS, Luso-Brazilian Review, Global Environmental, entre outros.
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Parabéns pela iniciativa!