Graziele Frederico, Doutoranda na Università degli Studi di Milano, Milão, Itália
Mestre e doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Tânia Pellegrini é professora emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde ingressou em 1997. Atua nas áreas de teoria da literatura, literatura brasileira e sociologia, tendo desenvolvido suas pesquisas com foco em narrativas brasileiras contemporâneas, realismo e indústria cultural. É autora de “Despropositos: estudos de ficçao brasileira contemporanea” (PELLEGRINI, 2008) e Realismo e realidade na literatura: um modo de ver o Brasil “ (PELLEGRINI, 2018).
Em sua trajetória acadêmica, Pellegrini publicou diversos artigos, apresentou comunicações e orientou vários trabalhos voltados ao tema da ditadura na literatura. Já em sua dissertação de mestrado, intitulada “Gavetas vazias? (Uma abordagem da narrativa brasileira dos anos 70)”, ela se propunha a decifrar o enigma de obras produzidas na década de 1970, ou seja, no intervalo que se inicia com o AI-5 e termina com a anistia de a “abertura” em 1979 (PELLEGRINI, 1987, p. 4).
São de sua autoria dois dos artigos da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (ELBC) mais citados nos últimos anos: “No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje” (PELLEGRINI, 2004) e “Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois” (PELLEGRINI, 2014). Também foi organizadora do dossiê sobre Realismo e Realidade, publicado no número 39 da ELBC (PELLEGRINI, 2012).
No artigo de 2014, publicado no âmbito do dossiê Literatura e Ditadura, Pellegrini relaciona as ações específicas do regime militar para o campo da cultura com a efetiva consolidação da indústria cultural brasileira. A entrevista que se segue, realizada com a professora e pesquisadora, tem como referência esse artigo, além de seus estudos e pesquisas recentes na área.
1. Professora Tânia, quais pistas ainda reveladoras podemos buscar no nosso passado ditatorial para explicar questões no nosso atual momento político?
Na verdade, tivemos duas ditaduras, a do período getulista e a militar, de 1964. Cada uma delas deixa pistas significantes, porque ditaduras são sempre semelhantes, em todo o mundo, assim como as armas que usa. A cultura é uma delas. A ditadura militar, entretanto, teve uma especificidade: ela se instaurou num momento em que cresciam e se consolidavam novos meios de comunicação, que incidiram sobre a produção cultural, a chamada indústria cultural. Diferentemente de outras transformações do passado, estes meios não só permitem como agudizam possibilidades e graus de interferência na formação de subjetividades e foram bastante utilizados pela ditadura, sobretudo a televisão. Tais possibilidades aprofundaram-se com computadores e celulares, a era digital, o mundo virtual. Essa é a “pista” que se deve seguir até hoje, inquirindo a direção na qual se vêm desenvolvendo as novas tecnologias de comunicação e sua relação com o campo cultural: se o da afirmação ou o da negação – no sentido adorniano – do que está posto atualmente.
2. Qual o paralelo que podemos traçar entre as consequências do projeto de censura ditatorial e uma perseguição ou tentativa de censura que se vê hoje tanto a nível institucional como por uma violência (virtual, mas não só) que acua e tenta coagir intelectuais, escritores, produtores culturais etc.?
A censura, tal como foi exercida durante a ditadura, não é mais possível, pois outros são os meios de produção e veiculação de cultura e informação. Estas são produzidas, divulgadas e consumidas, sem interferência aparente. A “censura”, se é que se pode ainda chamar assim, reside na poderosa estrutura mercantil e política dos próprios meios, propriedade de algumas poucas corporações nacionais e internacionais, que programam as preferências e escolhas dos consumidores e/ou fruidores de cultura. A estas, de maneira geral, não interessam questões que problematizem a constituição e a organização desigual da sociedade, tal como têm insistido em fazer intelectuais, artistas e produtores culturais humanistas e progressistas, até hoje, mais ou menos, em diferentes períodos. Daí uma possível violência concreta, relacionada ao aparato político, mas sobretudo simbólica, já embutida nos próprios meios, que, interferindo na constituição das subjetividades, interferem em suas representações.
3. Acha que em nosso atual momento político, assim como nos anos 1970, é possível surgir um novo modo de produção cultural no Brasil?
Os meios de produção cultural devem ser analisados dentro de um processo contínuo de descoberta ou invenção, de desenvolvimento e consolidação, até sua obsolescência, processo esse sempre estruturado em interesses financeiros e políticos. Nada de “novo” surgiu nos anos 1970 que já não estivesse embrionário ou nascente em décadas anteriores. Cito como exemplo a tecnologia de produção e reprodução de imagens, que começou com a fotografia, desenvolveu-se com o cinema, a TV, criando os meios audiovisuais. Os computadores completaram essa evolução, revolucionando as conquistas anteriores em muitos sentidos. E a literatura, em qualquer canto do mundo, vem traduzindo esse caminho, ao longo dos diferentes momentos históricos, de acordo com suas especificidades linguísticas e estéticas, sempre permeadas por questões políticas.
4. Pensando a indústria cultural para além da censura, como proposto em seu artigo “Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois” (PELLEGRINI, 2014), como podemos ver a influência da ascensão de uma extrema direita a nível global? Já é possível perceber algum reflexo em nossa produção cultural?
Digamos que a censura sempre pode ser um instrumento da indústria cultural (e talvez o termo “indústria” possa ser redimensionado hoje), devido às implicações políticas estruturais desta, que se consolidou com o triunfo do capitalismo global em nossos dias. A censura já nasce embutida nas mercadorias e produtos culturais incessantemente oferecidos pelas mais sofisticadas formas de propaganda, pela mídia tradicional e/ou pelas redes sociais, na medida em que a propalada liberdade de escolha do consumidor/leitor restringe-se ao que é “permitido” e exposto nas grandes vitrines reais ou virtuais. Há até lugar para as opções alternativas, mas, quanto mais à direita, hoje, mais se restringem essas opções. Talvez um dos reflexos disso seja o excesso de soluções estéticas, sobretudo nos produtos audiovisuais, que recorrem à representação exacerbada da violência, de que também não escapa a literatura.
5. Em seu artigo, você analisa e afirma que “empenhado em fragilizar a produção cultural de esquerda do período anterior, o Estado firmou sua política específica, calcada na ideologia de integração e de segurança nacionais”. Diante de inúmeros discursos atuais contra a produção intelectual da esquerda, é possível, por outro lado, diagnosticar a implementação ou uma estratégia governamental para uma política cultural substitutiva? Calcada em quais bases?
Considerando o período atual como o que se iniciaria com o impeachement de Dilma Roussef, não é possível ver, até agora, nenhuma estratégia ou projeto cultural estruturado, semelhante ao do período militar, com a censura como seu instrumento, inclusive porque não há distanciamento temporal suficiente. O que se percebe são cortes financeiros, fechamentos, extinções, vetos, anúncios e pronunciamentos raivosos mais ou menos aleatórios contra associações, organizações não governamentais e eventos culturais que contradigam ou tentem enfrentar a ideologia mercantil e moralista da direita.
6. Em seu artigo você também comenta o papel de integrador simbólico da indústria televisiva.[1] Podemos pensar em um paralelo com a internet, seus algoritmos e as redes sociais atualmente?
Sim, com o acréscimo de que ainda não existem pesquisas conclusivas a respeito das implicações ou dos efeitos dos novos meios na formação e/ou condicionamento das subjetividades. Em literatura, há grupos que ainda se podem chamar de pioneiros, dedicando-se a estudar as manifestações literárias da internet, suas possíveis transformações em forma e conteúdo, em relação com períodos anteriores (ELBC, 2016).
7. Na análise de 2014, você afirma que, com o final da ditadura em 1985 e com as bases lançadas pelo regime para a modernização da nossa indústria cultural, a ficção abandona a “anterior disposição de resistência”. Você acha que, como veem alguns críticos, está havendo um retorno desse tema na literatura ou em outros âmbitos culturais?
Sim. Por mais paradoxal que isso possa parecer em relação ao viés de minha análise, os novos meios também trazem condições de possibilidade de “democratizar” anseios e reivindicações de pautas antigas, tais como as do imprescindível espaço político – em todos os sentidos desta palavra – para as minorias raciais, religiosas e/ou de gênero. Isso é muito evidente no cinema nacional, na música popular e na literatura, que expandiram infinitamente, graças aos novos meios, sua possibilidade de divulgação e diálogo com o público. Tudo isso, é preciso reiterar, incide na formação de novas subjetividades, que talvez possam reagir e se constituir como individualidades mais sensíveis e permeáveis a essas questões no futuro.
[1] “Nesse aspecto, “integrar” significa, por meio dos estímulos específicos do espetáculo, incorporar setores marginais ao mercado, padronizar aspirações e preferências, diluir ou elidir diferenças, erodir tradições regionais, homogeneizar sonhos e gostos, modernizar hábitos e estabelecer preferências, de acordo com as necessidades criadas pelo próprio mercado de bens materiais e simbólicos” (PELLEGRINI, 2014, p. 161).
Referências
ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA – ELBC. Literatura e Ditadura, n. 43, 2014. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://ref.scielo.org/vwccpj
ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA – ELBC. Literatura e Novas Mídias, n. 47, 2016. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://ref.scielo.org/kjfspf
PELLEGRINI, T. Gavetas vazias?: uma abordagem da narrativa brasileira dos anos 70. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1987.
PELLEGRINI, T. No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 24, p. 15-34, 2004. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. Available from: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9003
PELLEGRINI, T. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume, 2008.
PELLEGRINI, T. Realismo e realidade na literatura: um modo de ver o Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.
Para ler os artigos, acesse
PELLEGRINI, T. Realismo: modos de usar. Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 39, p. 11-18, 2012. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. DOI: 10.1590/S2316-40182012000100001. Available from: http://ref.scielo.org/yhxy3k
PELLEGRINI, T. Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois. Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 43, p. 151-178, 2014. ISSN: 2316-4018 [viewed 2 June 2019]. DOI: 10.1590/S2316-40182014000100009. Available from: http://ref.scielo.org/2fh9w5
Links externos
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea – ELBC: www.scielo.br/elbc
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea – www.gelbc.com
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Sobre Graziele Frederico
Graziele Frederico é mestre em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília com a dissertação Ausências e silenciamentos: a ética nas narrativas recentes sobre a ditadura brasileira. Atualmente cursa o doutorado na Università degli Studi di Milano
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