Valéria dos Santos Guimarães, Editora da Revista História (São Paulo), Professora de História do Brasil Republicano, Teoria da História e História da Cultura na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Franca, SP, Brasil
Se você pensa que a publicação de debates sobre temas nacionais pela imprensa estrangeira é um expediente recente, está muito enganado. Viu-se como o portal The Intercept e jornalistas estrangeiros podem ter importância capital em questões de grande relevância para a história do Brasil e do mundo. A imprensa estrangeira, seja publicada no exterior ou nos territórios nacionais, há séculos se envolve com os temas locais nos mais diversos países do globo.
E a imprensa francesa, em particular, teve importância única no território americano durante dois séculos, pelo menos. Sandra Nitrini (2018), em recente artigo sobre a produção na área da literatura comparada no Brasil, repassa a constituição de um campo que esteve ligado diretamente ao estudo das relações Brasil e França, citando vários autores que trabalharam o tema tais como Gilberto Pinheiro Passos, Leyla-Perrone Moisés e muitos outros bem referenciados pela autora. No campo da História, o nome de Mário Carelli (1994) se destaca em empreender uma história comparada entre os dois países, discorrendo de pintores viajantes a falanstérios, da diplomacia à circulação de imaginários, o que ele definia como uma “colonização pelas ideias”.
Embora os autores citados não se dediquem especificamente à história do impresso periódico, muitos utilizaram jornais e revistas franceses como fonte de pesquisa. Tais iniciativas são precursoras em fornecer uma abordagem sob uma perspectiva transnacional da cultura brasileira, cuja retomada tem acompanhado uma tendência intensificada desde a década de 1990 e se feito notar em pesquisas recentes (inclusive sobre a imprensa periódica). São questionadas tanto a visão excessivamente eurocêntrica de uma história cultural do impresso a partir de sua acentuada difusão global desde o século XIX, quanto as tradicionais histórias nacionais da imprensa levadas a cabo pelas historiografias locais. Mesmo no âmbito da história comparada, o foco nos fenômenos em comum tem contestado as abordagens que tendiam ao estudo exclusivo em âmbito nacional. Do clássico L’apparition du Livre de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, de 1958/1992 a trabalhos mais recentes de Chloé Maurel (2014, p. 131), Christophe Charle (2015) ou a incontornável referência no assunto, o dicionário The Palgrave Dictionary of Transnational History – From the mid-19th century to the present day organizado por Akira Iriye e Pierre-Yves Saunier, com 1232 páginas, 350 autores de 25 países diferentes e mais de 400 verbetes (PALGRAVE MACMILLAN, 2009)[1], muitos são os autores que têm se dedicada refletir sobre a natureza ambígua dessa imprensa, nem nacional, nem estrangeira.
No esteio dessas reflexões, a Revista História (São Paulo, v. 38) traz o dossiê “A imprensa francófona nas Américas nos séculos XIX e XX” com artigos de professores da França, Alemanha, Canadá, México, Argentina, Uruguai e de várias partes do Brasil que pretendem refletir exatamente sobre o papel da imprensa francesa nas Américas, de norte a sul, e de seus agentes mediadores como jornalistas, correspondentes, repórteres, editores entre outros que ajudaram a inserir a região no debate transnacional. O período que se estende do século XIX até meados do século XX foi de hegemonia cultural francesa.
No caso das Américas, em particular, a importância desse país não se restringiu às áreas coloniais como certas regiões dos atuais Canadá ou Estados Unidos, ou mesmo a países em que a imigração de franceses foi significativa, como Argentina. A própria ideia de “latinidade” que distingue parte das Américas nasce inspirada nos ideais franceses do iluminismo que estiveram na base ideológica das guerras de independência desses países. No Canadá, por sua vez, jornais e revistas em francês exerceram um papel de resistência ao domínio anglófono. Do México ao Brasil, passando por Estados Unidos, Peru, Argentina ou Uruguai, franceses estiveram engajados em difundir sua cultura nas cidades em que se radicaram, participaram ativamente do métier da imprensa periódica com sua expertise nas artes gráficas, foram ativistas em prol de seus ideais políticos ou simplesmente mantinham suas folhas locais como órgãos de representação das colônias. Representantes diplomáticos ou aventureiros, livreiros-editores que tinham os periódicos como mais uma forma de negócio ou simplesmente importadores das vistosas revistas de moda ou de vanguarda que exerciam alto poder de atração no público americano, não importa: esses indivíduos atuaram como verdadeiros mediadores culturais que não só ajudaram a difundir a francofonia nas Américas como passaram a fazer parte da história das imprensas nacionais. E é justamente essa uma das principais reflexões teóricas inovadoras que trabalhos como esse suscitam: contra a ideia de uma imprensa estrangeira à parte das histórias nacionais, a intenção é destacar o papel desses periódicos franco-americanos para as trocas culturais e para a formação do campo intelectual americano no domínio da imprensa.
O dossiê foi organizado por Guimarães, Pinson e Cooper-Richet (2019), e apresenta o resultado da seleção de trabalhos no congresso internacional “A imprensa francófona nas Américas nos séculos XIX e XX” realizado em 2018 na UNESP. Conta com apoio financeiro da FAPESP e CAPES. Entre as publicações do projeto estão o livro coletivo “Imprensa estrangeira publicada no Brasil – primeiras incursões” (2017).
[1] A profusão de trabalhos que utilizam o conceito é tal que os anos recentes assistiram um esforço de revisão da trajetória de seu emprego e um bom exemplo é o trabalho citado de Pierre Yves Saunier (2013).
Referências
CARELLI, M. Culturas cruzadas: Intercâmbios culturais entre França e Brasil. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.
CHARLE, C. La dérégulation culturelle – essai d’histoire des cultures em Europe au XIXe siècle. Paris: PUF, 2015
FEBVRE, L. and MARTIN, H-J. O aparecimento do livro. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1992. [1958].
GUIMARÃES, V. S., PINSON, G. and COOPER-RICHET, D. A imprensa francófona nas Américas nos séculos XIX E XX. História (São Paulo), v. 38, e2019035, 2019. ISSN: 1980-4369 [acessado 9 setembro 2019]. Disponível em: http://historiasp.franca.unesp.br/wp-content/uploads/2019/09/1980-4369-his-38-e2019035.pdf
LUCA, T. R. de and GUIMARÃES, V. dos S. (Org.). Imprensa estrangeira publicada no Brasil: primeiras incursões. São Paulo: Rafael Copetti editor, 2017.
MAUREL, C. Manuel d’histoire globale – comprendre le “global turn” des sciences humaines. Paris: Armand Colin, 2014.
NITRINI, S. Um olhar sobre a literatura comparada no Brasil. Cadernos do IEB 10. São Paulo: IEB/USP; ABRALIC, 2018.
SAUNIER, P.-Y. and IRIYE, A. (Org.) The Palgrave Dictionary of Transnational History – From the mid-19th century to the present day. UK: Palgrave Macmillan UK, 2009.
Para ler os artigos, acesse
História vol.38 Assis/Franca 2019
Links externos
História (São Paulo) – HIS: www.scielo.br/his
http://www.medias19.org/index.php?id=23740
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