Moçambique: uma proposta filosófica para sair da crise

Luca Bussotti, Professor no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Pesquisador no Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil; Docente no curso de Doutorado em Paz, Democracia, Movimentos Sociais e Desenvolvimento Humano da Universidade Técnica de Moçambique (UDM), Maputo – Moçambique.

O ensaio Um Manifesto para Moçambique: A Terceira Via de Ngoenha e Castiano analisa a proposta avançada por dois entre os maiores filósofos da África lusófona, ambos moçambicanos e docentes da Universidade Pedagógica de Maputo. Eles partem do pressuposto de que Moçambique se encontra, há anos, numa crise política e ética sem precedentes. Tal crise é testemunhada por várias manifestações contrárias ao governo do dia, liderado desde a independência pelo mesmo partido (a FRELIMO), assim como por elementos objetivos.

Classificado como país autoritário apesar de ter uma Constituição democrática, atravessado por uma guerra no Norte do país com base em clivagens étnicas, econômicas e políticas, nos primeiros lugares quanto ao índice de corrupção a nível mundial, Moçambique – segundo os dois autores do Manifesto – deve encontrar um caminho diferente do atual.

A sua proposta passa por uma análise daquilo que tem sido feito até agora: por um lado, a experiência socialista incarnada por Samora Machel, entre 1975 a 1990, tinha mergulhado Moçambique num autoritarismo aberto, mas com um olho constantemente atento a garantir a justiça social, a promoção de um desenvolvimento inclusivo e a retitude ética; por outro lado, depois da abertura democrática, o modelo neoliberal de capitalismo que foi adotado deixou de ter qualquer perspectiva de justiça social, embora garantindo, pelo menos formalmente, as liberdades individuais, mas com uma corrupção devastadora.

Hoje, em que este último modelo nem garante as liberdades individuais, devido ao crescente autoritarismo do governo, Ngoenha e Castiano convidam os moçambicanos a levar a cabo uma reflexão profunda sobre o atual Moçambique e suas limitações, empurrando-os para abraçar uma terceira via, em que a justiça social – ainda estabelecida pelo artigo 11 da Constituição – esteja associada às liberdades individuais, efetivamente garantidas pelo Estado.

Trata-se de um desafio às classes dirigentes moçambicanas, assim como a sociedade civil daquele país, em que cada um dos principais atores sociais e políticos terá de deixar as suas certezas para implementar a causa de um bem comum, hoje quase que completamente esquecido por Moçambique. O apelo dirige-se também aos parceiros internacionais, acusados de favorecer a exclusão social mediante um neoliberalismo sem regras, que tolera e até favorece mecanismos difusos de corrupção que, mais uma vez, alimentam diferenças sociais com base na pertença política, étnica ou familiar.

O livro representa o culminar de uma série de análises filosóficas que os dois autores, com destaque especial para Severino Ngoenha, têm desenvolvido ao longo dos anos. Tais reflexões abordam questões relativas à identidade moçambicana e sua relação com a história do país (NGOENHA, 1991), à figura de Samora Machel e do seu legado (NGOENHA, 2009), e finalmente à necessidade de um pensamento engajado (NGOENHA e CASTIANO, 2011), indicando a via por uma filosofia militante e popular.

No caso de Ngoenha, a sua atividade desenvolvida ao longo dos dois últimos anos como divulgador filosófico, com base em questões moçambicanas, encontrou um eco internacional graças ao blogue Filosofia Pop, coordenado por Marcos Carvalho Lopes. A complementação de tal atividade tornou o pensamento engajado de Ngoenha conhecido mesmo entre as classes populares de Moçambique, tão de merecer uma homenagem numa das barracas de Maputo, onde a gente costuma se encontrar para tomar cerveja, evocando o título de um dos seus mais famosos livros: Das Independências às Liberdades (ver foto abaixo).

Sobre Luca Bussotti

É doutor em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade de Pisa (Itália), professor de Estudos Africanos na UFPE. É pesquisador na área de Política africana, Filosofia africana e História da África contemporânea.

Leia mais

NGOENHA, S. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Salesianas, 1991

NGOENHA, S. Filosofia africana: das independências às liberdades. Maputo: Imprensa Universitária, 1993

NGOENHA, S. Samora Machel. Ícone da 1ª República. Maputo: Ndjira, 2009

NGOENHA, S. and CASTIANO, J.P. Pensamento engajado. Maputo: Educar, 2011

Para ler o artigo, acesse

BUSSOTTI, L. Um manifesto para Moçambique: a terceira via de Ngoenha e Castiano. Trans/Form/Ação [online]. 2022, vol. 45 (spe), pp. 89-108 [viewed 22 February 2022]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2022.v45esp.06.p89. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/xmWdHCmkwhdY6hg6rtDtp4g/?lang=pt

Link(s)

Link no portal de Periódicos: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/9884

Luca Bussotti: https://orcid.org/0000-0002-1720-3571

Trans/Form/Ação – TRANS: https://www.scielo.br/j/trans

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

BUSSOTTI, L. Moçambique: uma proposta filosófica para sair da crise [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2022 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2022/03/23/mocambique-uma-proposta-filosofica-para-sair-da-crise/

 

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