Prof. Dr. Bruno Augusto Vigo Milanez, Editor Assistente da Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.
No artigo Justiça devastada pela guerra: análise empírica do impacto do conflito armado nas garantias do processo penal justo na Ucrânia (em inglês), a Profª Kaja Kowalczewska, da Universidade Polonesa de Breslávia (Wroclaw University), enfrenta a questão da forma como a Ucrânia, em meio ao conflito armado com a Rússia, tenta manter padrões mínimos inerentes ao devido processo legal para o julgamento dos crimes decorrentes da guerra, mantendo assim compromissos assumidos em tratados e convenções internacionais.
Mesmo com todas as dificuldades de manutenção da ordem e do funcionamento adequado do Estado e de seus serviços públicos mais básicos, sustenta-se que a Ucrânia vem obtendo relativo êxito na manutenção do funcionamento de justiça criminal, naquilo que se refere à observância dos critérios mínimos inerentes ao justo processo (imparcialidade da jurisdição, presunção de inocência, direito à prova, direito à audiência e à defesa etc.) em relação aos crimes decorrentes dos conflitos armados.
Ainda assim, inevitáveis óbices se fazem presentes para a concretização da justa persecução penal no curso do conflito armado. Uma delas diz respeito às investigações dos delitos. No caso específico das infrações envolvendo os conflitos armados no território ucraniano, além das investigações realizadas pelas autoridades locais, a Ucrânia tem contado com iniciativas internacionais para a concretização de finalidades investigativas, destacando-se a criação de uma base de dados central de provas de crimes internacionais e do centro internacional para a repressão do crime de agressão contra a Ucrânia, ambas desenvolvidas e lideradas pelo EuroJust. Ainda, no âmbito do Conselho da Europa, estabeleceu-se um acordo multilateral para estabelecer uma base de registro de danos para a Ucrânia.
Além disso, antes mesmo do intenso conflito armado, o sistema judicial ucraniano vinha sofrendo profundas e recentes reformas, no sentido do reforço a padrões de transparência e integridade aos julgamentos, em resposta a diversas denúncias e escândalos de corrupção, influências políticas e falta de publicidade na atuação do Judiciário. Haja vista que, no entendimento da comunidade internacional, tais medidas contribuem para a maximização dos ideais de processo justo, a implementação destas reformas foi mantida durante o conflito armado.
Neste mesmo contexto, outro fator de tensão em face do processo justo diz respeito a não adesão da Ucrânia ao Estatuto do Roma e à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o que pode ser eventualmente interpretado como uma quebra de imparcialidade, haja vista a possibilidade de indulgência para com crimes de guerra praticados por apoiadores da Ucrânia em território interno.
Estabelecido este panorama geral, buscou-se ainda promover pesquisa empírica envolvendo questionários distribuídos eletronicamente a advogados e juízes que atuam em processos criminais envolvendo conflitos armados na Ucrânia. As respostas aos formulários permitem algumas inferências.
Primeiramente, dentre os dados da pesquisa, encontra-se a nomeação de defensores, pelo Estado Ucraniano, aos acusados sem defensor constituído, em observância à garantia da defesa técnica no processo penal. Outro dado importante é aquele que aponta para o expressivo aumento de casos penais tendo por objeto conflitos armados na Ucrânia, em comparação com dados de 2014, quando teve início a agressão perpetrada pela Rússia em solo ucraniano.
Ainda, a mesma pesquisa aponta óbices estruturais à manutenção permanente e ininterrupta dos serviços judiciais, como a falta ou escassez de energia elétrica e internet, ataques aéreos e terrestres, inundações, preocupações com segurança pessoal dos atores do sistema de justiça, escassez de funcionários, dificuldades de deslocamento e manutenção de juízes fora dos locais tradicionais em que exercem a jurisdição e, do ponto de vista normativo, a dificuldade de aplicação das regras processuais penais, seja diante de lacunas legais no processo penal em julgamentos de emergência, seja pela baixa formação acadêmica em direito internacional humanitário.
Há ainda dilemas éticos envolvidos nos processos penais dos conflitos armados, que podem colocar à prova a independência e imparcialidade judiciais, mormente a se pensar que os casos penais são julgados por juízes ucranianos, envolvendo crimes de guerra ocorridos em seu próprio país e que, não raro, têm como vítimas seus concidadãos, em face de agressões promovidas por estrangeiros adversários de guerra.
Os dilemas éticos se agravam, segundo a pesquisa, em face de outras razões de índole subjetiva, como a proximidade com as atrocidades da guerra, os traumas gerados pela violência, o envolvimento de familiares nas forças armadas ou em grupos de ajuda humanitária e até mesmo a perda de familiares ou conhecidos nos ataques.
A pesquisa aponta ainda desafios que se colocam do ponto de vista social, como a baixa credibilidade pública do Judiciário, bem como a pressão pública e até mesmo midiática (inclusive das redes sociais) sofrida não apenas por juízes, mas igualmente por advogados.
Estes são apenas alguns dos diversos desafios que a Ucrânia encontra para realizar uma adequada persecução dos crimes de guerra ocorridos em seu território. Ainda assim, com o auxílio da comunidade internacional e dentro dos limites possíveis, acredita-se que algumas respostas penais às agressões sofridas serão realizadas, observando-se o devido processo e o direito das vítimas.
Referências
The Ukrainian Judicial System in a Time of Armed Conflict [online]. International Commission of Jurists. 2022 [viewed 22 November 2023]. Available from: https://icj2.wpenginepowered.com/wp-content/uploads/2022/11/The_Ukrainian-Judicial_System_in_a_Time_of_Armed_Conflict_ICJ_briefing_paper_2022.pdf
Para ler o artigo, acesse
KOWALCZEWSKA, K. War-Torn Justice: Empirical Analysis of the Impact of Armed Conflict on Fair Trial Guarantees in Ukraine. Rev. Bras. Direito Processual Penal [online]. 2023, vol. 9, no. 3, pp. 1061–107 [viewed 22 November 2023]. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v9i3.896. Available from: https://www.scielo.br/j/rbdpp/a/hJ4F5YQwDnqhvLnT6g4nc7j/
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