Caroline Fanizzi, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e o Pensamento Contemporâneo da USP (GEEPC-USP), São Paulo, Brasil.
O artigo Não é ninguém, é o professor! Sobre a figura docente e o seu ofício, de autoria de Caroline Fanizzi e José Sérgio Fonseca de Carvalho, propõe uma reflexão, à luz da filosofia e da psicanálise, sobre os efeitos, à educação e ao professor, da presença de práticas, mecanismos e discursos tecnicistas no campo educativo que buscam substituir a “pessoalidade” da ação docente pela “tecnicidade impessoal” de sua atividade.
A publicação apresenta parte das discussões desenvolvidas na pesquisa de doutorado realizada na Universidade de São Paulo (USP) e na Université Paris VIII acerca do sofrimento de professores e professoras da educação básica. Dentre os resultados da referida pesquisa, está a tese intitulada O sofrimento docente: apenas aqueles que agem podem também sofrer (2022) e o livro, de mesmo título, publicado em 2023 pela Editora Contexto.
O artigo deixa revelar, desde o seu título, sua inspiração na figura literária do padeiro de Rubem Braga que, para não incomodar os moradores, entregava os pães, apertava a campainha e avisava gritando “Não é ninguém, é o padeiro!”. Essa forma de identificar-se, ou melhor, de desidentificar-se, inspira-nos a refletir sobre as características deste (não-)personagem: o “ninguém”. De forma específica, tomamos a figura do ninguém como uma metáfora das vicissitudes do ofício docente submetido à tecnicização, à normalização burocrática e ao fetiche da redução dos desafios da atividade docente à aplicação de supostas metodologias pedagógicas redentoras.
O “discurso de tecnicização da educação”, estruturado em torno de uma pretendida completude, centralidade e autonomia da dimensão técnica e metodológica do educar, concebe a educação como uma atividade que prescinde da presença de um “alguém”, de um sujeito a quem se faz possível o usufruto de um lugar de ação e enunciação. O que resta ao ofício docente diante dos esforços que visam reduzi-lo a uma atividade guiada pela lógica da produção fabril, marcada pela repetição automatizada de processos que independem da unicidade e pessoalidade daquele que a realiza? Estaria essa condição relacionada a queixas, adoecimentos, sentimentos de desvalorização e impotência frequentemente enunciados pelos professores?
O exame desses questionamentos foi tecido à luz de uma fenomenologia das atividades humanas, tal como a concebe Hannah Arendt, e de escritos que buscam compreender a educação a partir dos aportes da psicanálise.
Afastando-se de uma perspectiva da “ação”, o discurso tecnicista compreende a educação como uma atividade semelhante àquela da produção fabril e, como tal, visa lhe impor – e aos sujeitos que a empreendem – a lógica própria à atividade fabricadora (Arendt, 2015). Ocorre que a lógica fabril da produção em escala industrial não suporta a presença de agentes capazes de, no percurso da experiência, mudar o rumo de sua produção. Para que atinja os fins previamente determinados é imperativo que todos os sujeitos envolvidos em seu processo se limitem ao “comportamento” sempre previsível e determinado.
Figura 1. “O padeiro, venda de pão ao domicílio” (Fotografia de Joshua Benoliel, 1910).
A docência torna-se, nessa lógica, um ofício supostamente passível de ser exercido por qualquer um, por um “ninguém”, como sonham aqueles que planejam os sistemas apostilados. Ao ensino bastaria um bom conjunto de materiais e métodos e um aplicador apto que se comporte adequadamente. É, afinal, precisamente o comportamento uniforme aquele “que se presta à determinação estatística e, portanto, à predição cientificamente correta” (Arendt, 2015, p. 53), atributos fundamentais ao discurso de tecnicização da educação.
Como desenvolvido no artigo, em uma lógica fabricadora e tecnicista visa-se um processo no qual não haja fios que se soltem pela ação de um alguém, tampouco imprevistos que exijam um novo cálculo de rota ou impliquem um atraso nas entregas. O sistema (de ensino ou outro qualquer) busca tornar-se imune aos sujeitos no momento em que ele os toma como supérfluos, como “dentes de uma engrenagem”.
Enredado em seu ofício por discursos e mecanismos que o compelem ao comportamento – e não à ação –, o professor é então transformado na figura abstrata do ninguém. É ele, assim, um não-personagem na narrativa que se conta sobre a educação, um não-personagem em seu próprio ofício. E isso certamente não se dá sem consequências, visto que uma pessoa que se lança a ensinar “não faz simplesmente alguma coisa, ela faz também alguma coisa de si mesma: sua identidade carrega as marcas de sua própria atividade e uma boa parte de sua existência é caracterizada por sua atuação profissional” (Tardif; Raymond, 2000, p. 210).
A “ninguém-dade” de um professor, como propomos no artigo, opera uma espécie de ruptura no fio de sua narrativa (Ricœur, 2021) e participa de modo profundo daquilo que faz sofrer um sujeito (Fanizzi, 2023). Afinal, como propõe Ricœur (2021), “uma vida é a história desta vida, em busca de narração. Compreender a si mesmo é ser capaz de contar histórias sobre si mesmo que sejam, ao mesmo tempo, inteligíveis e aceitáveis, sobretudo aceitáveis” (p. 21-22, grifos e tradução nossa).
A partir dessas ponderações, propomos estar a condição de “ninguém-dade” profundamente relacionada à grande quantidade de professores que hoje sofrem e se sentem adoecidos no exercício da docência (Fanizzi, 2023). O sofrimento de alguém, assevera Ricœur (2021), desdobra-se das ameaças e constrangimentos infligidos ao exercício de suas capacidades enquanto agente humano, dentre elas as capacidades de agir, de dizer e de (se) contar. Sem um alguém, não há ação, não há enunciação, tampouco a possibilidade de narrar.
Isto posto, buscamos no referido artigo sustentar a proposição de serem os reclamos de um professor uma forma de enunciar a existência de um alguém que sofre ao ver-se enclausurado em mecanismos que lhe furtam a possibilidade de ação e de enunciação. De um alguém que vê, a cada dia, seu ofício ser reduzido a uma atividade impessoal e repetitiva que não deixa rastros atrás de si, tampouco estórias e personagens.
Referências
ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 12. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
FANIZZI, C. O sofrimento docente: apenas aqueles que agem podem também sofrer [online]. Biblioteca Digital da Universidade de São Paulo (USP). 2022 [viewed 27 March 2024]. https://doi.org/10.11606/T.48.2022.tde-23022023-115451. Available from: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48135/tde-23022023-115451/pt-br.php
FANIZZI, C. O sofrimento docente: apenas aqueles que agem podem também sofrer. São Paulo: Editora Contexto, 2023.
RICŒUR, P. La souffrance n’est pas la douleur. In: MARIN, C and ZACCAÏ-REYNERS, N. (org.). Souffrance et douleur: autour de Paul Ricœur. Paris: Presses Universitaires de France, 2021, p. 13-33.
TARDIF, M. and RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educ. Soc [online]. 2000, vol. 21, no. 73, pp. 209-244 [viewed 27 March 2024]. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000400013. Available from: https://www.scielo.br/j/es/a/Ks666mx7qLpbLThJQmXL7CB/
Para ler o artigo, acesse
FANIZZI, C. and CARVALHO, J.S.F.D. Não é ninguém, é o professor! Sobre a figura docente e o seu ofício. Educação Em Revista [online]. 2024, vol. 40, e38360 [viewed 27 March 2024]. https://doi.org/10.1590/0102-4698-38360. Available from: https://www.scielo.br/j/edur/a/zx9JCvGZj4P45dMZ9NfW7yH/
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