Eduardo Rocha, jornalista, Belém, PA, Brasil.
O dossiê Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico. Parte II publicado no Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi – Humanas (vol. 19, no. 3, 2024) traz relatos de estudantes indígenas em defesa de uma Antropologia do “pensar indígena”, textos e fotos raras feitas pelos pesquisadores Eduardo e Clara Galvão e outras informações sobre o extremo oeste da Amazônia brasileira.
Seja em que tempo for e com ou sem recursos tecnológicos de ponta, observar e registrar cenas e fatos com foco na reflexão sobre as relações de povos indígenas e não indígenas é algo estrutural para a existência humana. Ainda mais verdadeiro na Amazônia, região que está na pauta do dia em escala mundial por causa da questão ambiental à social.
Assim, ainda na primeira metade da década de 1950, o antropólogo e etnógrafo Eduardo Galvão e a mulher dele, a bibliotecária Clara Galvão, empreenderam expedições históricas pelo noroeste da Amazônia, ao longo do rio Negro, e legaram para a humanidade um acervo de textos, testemunhos e fotografias raros sobre as relações de poder entre povos naquela região do Brasil, especialmente no sistema de aviamento no ciclo da borracha.
E, na atualidade, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), um grupo de estudantes indígenas produz artigo relatando os obstáculos para uma melhor compreensão e perpetuação dos conhecimentos dos povos originários por parte deles próprios, dada a concepção enraizada de conceitos não indígenas.
Esses dois casos de protagonismo na Amazônia integram o conjunto de nove artigos do dossiê. A publicação da segunda parte do dossiê encerra o ano de 2024, quando transcorrem 130 anos da primeira edição dessa publicação do Museu Goeldi.
Protagonismo
No artigo Pamusé: fermentação de uma Antropologia indígena, de autoria dos pesquisadores indígenas João Paulo Lima Barreto (do povo Tukano), Justino Sarmento Rezende (do povo Tuyuka), Silvio Sanches (do povo Bará) e Jaime Fernandes Diakara (do povo Dessana), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em Manaus (AM), é possível conferir a busca por uma prática que valorize a produção e difusão de conhecimentos sobre povos originários do Brasil a partir do olhar, do protagonismo, dos próprios pesquisadores indígenas.
Esses quatro autores integram o coletivo de pesquisadores do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena (NEAI), coordenado pelos professores, Gilton Mendes dos Santos e Carlos Dias. O que move o coletivo é a “fermentação” de ideias, para além da mera tradução dos sistemas de conhecimentos indígenas.
Eles chamam o Núcleo de “Canoa NEAI”, ou seja, canoa como “metáfora usada para representar a mudança de concepção e, nesse sentido, simboliza o meio de transporte que leva as pessoas de uma situação a outra, transformando-as ao longo do caminho.” A tarefa não é fácil: “O processo de transformação exige esforço e superação de desafios,” como externam os pesquisadores no texto.
“Por mais que sejamos da mesma paisagem etnográfica, somos pertencentes a povos diferentes – somos Bará, Tuyuka, Tukano e Dessana –, atualmente, constituímos um corpo de estudantes indígenas pesquisadores do rio Negro no NEAI, sendo dois doutorandos, Jaime Fernandes Diakara e Silvio Sanches Bará, e dois pós-doutorandos, João Paulo Barreto Tukano e Justino Sarmento Rezende Tuyuka. Somos um time que vem pensando na possibilidade da construção de uma ‘Antropologia indígena’, isto é, de buscar conceitos e categorias próprios, estimulados pela ciência antropológica, para explicar os fenômenos sociocosmológicos nos quais estamos interessados ou com os quais envolvidos,” como é destacado no artigo científico.
No relato individual está exposto o desafio de se despir das concepções não indígenas assimiladas em um processo de longa duração para, por meio do conhecimento e de metodologias gerados pela Antropologia, se “pensar o pensamento indígena,” vencendo o “matapi” cultural de até então, isto é, a visão preconceituosa da sociedade e valores impostos aos povos originários pelos povos não indígenas.
História e memória do Alto Rio Negro
“O Dossiê traz, do ponto de vista social, importantes questões relacionadas à história e à memória da região do alto e do médio rio Negro, no noroeste amazônico. Temos o texto dos próprios autores indígenas que escrevem um artigo sobre a experiência deles de pesquisadores indígenas na região; há também um trabalho sobre a presença indígena na cidade de Barcelos no século 18, e então, temos uma história do tempo presente e esse outro de uma história mais antiga. Entre outros trabalhos interessantes, está um texto sobre o acervo do antropólogo Eduardo Galvão que traz algumas informações inéditas dos diários de campo dele e também de fotografias que o Galvão fez naquela época sobre o sistema de aviamento no rio Negro, como importante contribuição para a história indígena dessa área de estudos,” destaca o pesquisador Márcio Meira, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), e um dos organizadores.
Na reunião de pesquisas sobre o Alto Rio Negro, são abordados aspectos do “processo civilizatório” experimentado por grupos Yuhupdeh, como eles próprios se autodenominam, dando voz a uma discussão do ponto de vista etnográfico acerca dos sentidos assumidos pela noção de “civilização” como escreve Michel Barbará em Entre o mito e a história: os sentidos da civilização entre os Yuhupdeh do alto rio Negro.
O surgimento de lideranças indígenas contemporâneas com novas habilidades de resistência a partir da década de 1990 implica em uma série de transformações promovidas por esses sujeitos singulares no contexto das comunidades. São lideranças com um novo perfil: habilidades de escolarização, capacidade para tratar com as burocracias dos projetos, para negociar com agentes governamentais e do terceiro setor. É sobre esses aspectos da contemporaneidade das lutas indígenas que tratam Aline Fonseca Iubel e Renato Martelli Soares em O movimento das lideranças no rio Negro: trajetórias, transições e continuidade.
Outros temas envolvem: a constituição de uma rede indígena de manejo de plantas, com destaque para as mulheres “donas de roça” como apresentam Laure Emperaire e Elaine Moreira no artigo Coleções vegetais no noroeste da Amazônia; e, ainda, a contribuição do antropólogo Eduardo Galvão sobre a cultura material com fotografias do trabalho feminino de tecelagem na região do rio Negro, no artigo Eduardo Galvão: diálogos sobre tecidos e trançados do rio Negro de Lucia Hussak van Velthem.
Contato
O contato entre povos indígenas e não indígenas permanece ocorrendo na sociedade brasileira atual, e um tema que sempre vem à tona a partir desse fato é o questionamento sobre a ação de aculturação dos povos originários, em que a cultura dos povos originários cede lugar à dos não indígenas. Pois bem, o antropólogo e etnólogo carioca Eduardo Galvão, que atuou no Museu Emílio Goeldi, empreendeu com a mulher dele, Clara Galvão, duas expedições pela região do rio Negro, em 1951 e em 1954.
Eles levantaram informações até hoje preciosas sobre as relações sociais e econômicas naquela região. Portanto, Galvão foi além desse paradigma referente à aculturação, como assinalam os pesquisadores Márcio Meira e Lucia Hussak Van Velthem, ambos do MPEG, autores de Testemunhos de Eduardo Galvão sobre o sistema de aviamento no rio Negro: excertos de documentos do Arquivo do Museu Paraense Emílio Goeldi.
“O objetivo da antropologia, afinal de contas, não é apenas descrever as culturas como se encontram no momento, mas o de tentar alcançar a dinâmica e o funcionamento de transmissão e de mudança cultural. Em outros termos, buscamos generalizações sobre o fenômeno cultural, não apenas a etnografia das tribos do Brasil,” enfatizou Eduardo Galvão em um de seus relatos sobre as expedições pelo rio Negro.
Esse e outros documentos (diários de campo e fotografias) raros e muito pouco divulgados, são fonte de dados, inclusive, para lideranças indígenas. Os documentos em vários formatos constituem o Fundo Eduardo Galvão e Clara Galvão, do Arquivo Guilherme de la Penha, do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Aviamento
Em seus estudos, Eduardo Galvão destacou: “O índio, recentemente ‘descido’ ou já de segunda geração e fixado nos sítios e seringais, não atua como elemento simplesmente passivo que, engajado na economia local e tendo abandonado a sociedade tribal, substitui seus elementos culturais pelos do caboclo com que está em convívio. Pelo contrário, atua sobre a cultura do caboclo, reavivando nela os elementos indígenas herdados na geração passada.”
Essa fala do pesquisador denota a complexidade das relações de poder entre povos e até mesmo entre integrantes de um mesmo povo, como ele explicitou no estudo que fez com Clara Galvão acerca do processo de aviamento relacionado ao ciclo da borracha no noroeste da Amazônia, fundamentalmente no seringal Providência, nas ilhas próximas a embocadura do rio Padauiri, na década de 1950. Inclusive, a foto da capa deste Boletim do MPEG mostra uma cena do aviamento na Amazônia.
O aviamento envolvia basicamente o adiantamento de gêneros e material por parte de comerciantes em casas aviadoras, como a firma J. G. Araújo, para quem atuava na obtenção do látex nas matas, a fim de ser, em seguida, pago com a produção. Nesse processo de obtenção da borracha in natura, indígenas eram “descidos” de suas aldeias, ou seja, tornavam-se mão de obra compulsoriamente. O texto traz testemunhos de comerciantes e outras pessoas dessa época, precisamente no contexto da crise da borracha.
Como é possível se verificar no Dossiê, os conhecimentos indígenas têm um caráter dinâmico que afeta os antigos e novos indivíduos nos povos originários. São expressivas as peculiaridades da linguagem adotada por povos distintos para se referirem aos seres das águas, bem como as nuances da experiência de formação de agentes indígenas de manejo ambiental. Etnias demonstram capacidade incomum de se recriarem diante das conjunturas históricas (relações de poder) na região nos últimos três séculos, como verificado na construção da vila colonial de Barcelos, no baixo rio Negro.
O Dossiê “Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico. Parte II”, com apresentação dos pesquisadores Geraldo Andrello, Pedro Lolli e Márcio Meira, reúne textos como: Aprender a (não) ser visto na Amazônia: encantados e gente-peixe nos rios Negro e Uaupés, por Geraldo Andrello e Luiz Augusto Sousa Nascimento; Conhecimentos indígenas e colaboração intercultural no rio Tiquié, noroeste amazônico, a cargo de Aloisio Cabalzar; O papel estratégico da mão de obra indígena na urbanização da vila colonial de Barcelos (1755-1761), pelos pesquisadores Ricardo Borges, Décio de Alencar Guzmán e Márcio Meira.
Para ler a apresentação do dossiê, acesse
ANDRELLO, G., LOLLI, P. and MEIRA, M. Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico. Parte II. Boletim Do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas [online]. 2024, vol. 19, no. 3, e20240084 [viewed 17 February 2025]. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2024-0084. Available from: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/STn8GrCdmQ9Y9HQqSw9Bv7j/
Para ler o dossiê completo acesse
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. vol. 19, no. 3, 2024
Referências
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