Por Martha San Juan França
A troca de informações no ambiente virtual por parte de pessoas diagnosticadas pelo saber tradicional como portadoras de distúrbios mentais (ouvir vozes) é o tema da dissertação de mestrado de Octávia Cristina Barros, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O artigo “Ouvir vozes: um estudo sobre a troca de experiências em ambiente virtual”, para o número 50 (v. 1 8, jul./set. 2014) da revista Interface – Comunicação, Saúde e Educação, assinado em conjunto com o seu orientador Octavio Domont de Serpa Júnior, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia Subjetividade do Instituto, mostra uma iniciativa ainda pouco conhecida no Brasil mas que existe em 26 países. Trata-se da rede Intervoice, um exemplo de como os ouvidores de vozes utilizam a internet para criar laços sociais e um novo entendimento sobre essa experiência. Na entrevista a seguir, Domont de Serpa Júnior explica os fundamentos desse movimento de ajuda interpares (peer support) incluindo suas formas de organização digital, que podem se tornar um caminho auxiliar de recuperação para pessoas marcadas com transtorno psiquiátrico; e de formação para os profissionais dedicados aos cuidados com a saúde mental.
1. O que é o movimento Intervoice?
O Intervoice (The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices) é uma organização internacional criada na Holanda no final da década de 1980 como resultado do trabalho do psiquiatra holandês Marius Romme e de sua colega Sandra Escher. Sua proposta é oferecer suporte administrativo e coordenar uma série de iniciativas destinadas a promover o emprego de novas abordagens no cuidado dos ouvidores de vozes. Parte do princípio de que o problema principal não é o fato de ouvir vozes, mas a dificuldade de estabelecer algum tipo de convivência com elas. A troca de experiências e de narrativas pessoais representa uma alternativa ao conhecimento psiquiátrico tradicional e uma estratégia de vivência. Hoje existem redes nacionais de ouvidores de vozes em 26 países coordenadas pelo Intervoice, que é dirigido por um conselho constituído por pessoas que ouvem vozes e por profissionais especializados. Em 2007, o Intervoice criou uma página na internet para promover essa troca de experiências (http://www.intervoiceonline.org/).
2. Qual o interesse do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade da UFRJ nesse tipo de pesquisa?
O principal objetivo do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade do IPUB/UFRJ é reunir pesquisadores voltados para o estudo das experiências e narrativas de adoecimento, tratamento e superação de pessoas diagnosticadas com transtorno mental. Particularmente, conheci o Intervoice a partir do interesse que me foi suscitado pelo assunto, em função de uma experiência clínica produzida por iniciativa de alguns pacientes de um hospital onde eu trabalhava, ainda antes do trabalho no IPUB. Esses pacientes propuseram a criação de um grupo de ouvidores de vozes seguindo o exemplo do Intervoice. A partir da bibliografia, examinamos a concepção de sujeito, presente nesse tipo de dispositivo de ajuda mútua, pensando no nosso interesse em estudar a experiência e a narrativa do adoecimento na saúde mental.
3. Qual o objetivo de pesquisa clínica com esses grupos?
Uma das preocupações que estavam na origem dos grupos de ouvidores de vozes partiu da constatação de que muitos pacientes atendidos estavam em tratamento, recebiam atendimento adequado, inclusive farmacológico, e ainda assim a experiência persistia. Ao compartilhar esse tipo de vivência em um grupo, essas pessoas conseguiram uma melhor convivência com as vozes, estimulando a troca de experiência e a produção de narrativas pessoais sobre o assunto. O pioneirismo desse tipo de abordagem visa a considerar as vozes não como uma expressão natural de um processo de adoecimento, mas uma experiência que faz parte de um contexto mais amplo da vida.
A nossa pesquisa clínica ainda é limitada, mas verificamos que o exercício de construção de narrativas sobre o ouvir vozes permite que cada sujeito consiga dar um resignificado alternativo à sua experiência e construa um sentido que a torne menos sofrida, menos dolorosa. Isso nós vimos acontecer.
4. O sentido desses grupos é o mesmo de outros formados na ajuda mútua a pacientes com problemas físicos, como por exemplo, câncer, diabetes, doenças cardíacas?
O espírito é o mesmo de troca de experiências. A diferença é que o Intervoice tem um espírito forte de questionamento da leitura única da biomedicina para esta experiência. O movimento busca outros entendimentos, outras significações para a experiência de ouvir vozes. Suponho, porque não sou um conhecedor profundo desses outros grupos, que existe uma adesão a priori da versão biomédica da doença. No caso de transtornos mentais há mais concorrência de outras interpretações e no caso do Intervoice isso é muito claro. Os interessados em participar se agrupam pela reivindicação de uma experiência subjetiva comum e não pela posse de uma etiqueta diagnóstica. Não existe uma única narrativa totalizante que dê conta da experiência de ouvir vozes, cada um está procurando a sua.
5. E como as mídias sociais se inserem nesse tipo de abordagem?
O trabalho com as mídias sociais faz parte da dissertação de mestrado de Octavia Cristina Barros e está sendo mais exploratório e descritivo dessa experiência. Ela utiliza para isso a netnografia, método de pesquisa destinado a investigar as novas formações sociais que surgem quando as pessoas se comunicam e se organizam no universo digital. Octavia se fixou no estudo das diferentes ferramentas de mídias digitais que o Intervoice tem utilizado, começando pelo próprio site que hoje não tem muita interatividade, passando para o Facebook. Há também uma página no Twitter e um canal no YouTube.
6. Os grupos de ouvidores de vozes do Brasil participam do movimento?
Os brasileiros não têm um grupo no Facebook, mas podem, se quiserem, participar do Intervoice, sediado na Inglaterra, que é público. É só pedir para participar do grupo. Na sua dissertação, a Octavia está analisando o Facebook da Intervoice internacional.
7. Em sua opinião, até que ponto as redes podem ser usadas para ajudar essas pessoas?
É isso que estamos procurando responder. Por enquanto ainda é uma aposta. A aposta de que as redes sociais podem sim cumprir um importante papel de compartilhamento de experiências entre pessoas que ouvem vozes e entre pessoas que não têm essa experiência, mas podem conhecer o que é viver esse tipo de estado mental emocional. Também acreditamos que esse compartilhamento é formador para profissionais e futuros profissionais da área de saúde mental, tornando-se um banco ou um repositório de relatos de experiências com as quais possam entrar em contato. Mas ainda é uma aposta.
A pesquisa abordou dois aspectos – a questão do suporte mútuo e a de busca de alternativas em relação à medicação. Em relação a essa última questão, ela constatou que uma proporção significativa dos participantes (30%) experimenta os “sintomas” de ouvir vozes, apesar do uso de remédios. Também foi constatado que a forma como cada pessoa lida com essa experiência interfere diretamente no seu cotidiano sem causar necessariamente prejuízos ou dificultar tarefas. Mas há um número significativo de pessoas que sofrem com os aspectos negativos e incapacitantes dessa experiência.
Para ler os artigo, acesse:
BARROS, Octávia Cristina; SERPA JUNIOR, Octavio Domont de.Ouvir vozes: um estudo sobre a troca de experiências em ambiente virtual.Interface (Botucatu) [online]. 2014, vol.18, n.50 [citado 2014-10-23], pp. 557-569. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000300557&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1807-5762. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0680.
Link relacionado:
Interface – Comunicação, Saúde, Educação – <http://www.scielo.br/icse/>
Octavio Domont de Serpa Júnior é médico com especialização em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado e doutorado em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental pela UFRJ, e pós-doutorado no Centre de Recherche en Épistémologie Appliquée/École Polytechnique. Atualmente é professor-adjunto da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade. Tem experiência em ensino e pesquisa nas áreas de Psicologia, Saúde Mental e Psiquiatria, com ênfase em Psicopatologia, atuando principalmente nos temas de psiquiatria, psicopatologia, subjetividade, metodologias da primeira pessoa, narrativas, alucinação auditiva verbal, esquizofrenia, fenomenologia, filosofia da mente, psicanálise e história da psiquiatria.
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