Roberto Marinucci, editor-chefe da Revista REMHU, Brasília, DF, Brasil
No final do século passado, após a queda do muro de Berlim e a instituição da assim chamada “cidadania europeia”, acreditava-se que o novo cenário fosse propício para a concretização de ideais cosmopolitas e para o reconhecimento dos direitos de todos os seres humanos, independentemente de sua nacionalidade. No entanto, contrariando essas expectativas, surgiu uma verdadeira “obsessão por fronteiras”, como afirma Michel Foucher.
O governo da Hungria acaba de anunciar a construção de um muro na fronteira com a Sérvia para conter o fluxo de migrantes irregulares. Não se trata de uma medida inédita. No mês de março, o Quênia iniciou a construção de uma barreira ao longo da fronteira com a Somália. Em 2014, foi a Bulgária que ergueu um muro na divisa com a Turquia. Nos últimos anos, foram construídas ou ampliadas barreiras nas fronteiras entre EUA-México, Índia-Bangladesh, Índia-Paquistão, Botsuana-Zimbábue, Israel-Cisjordânia, Israel-Líbano, Grécia-Turquia, Chipre, Ceuta/Melilla (Espanha), entre outros.
Quais as causas da ereção desses “muros da vergonha”? Por que em tempos de globalização, de livre circulação de mercadorias e capitais, são criadas barreiras contra a livre circulação de pessoas? Por que países signatários da Convenção de Genebra de 1951 criam obstáculos aos solicitantes de refúgio, que fogem de conflitos ou situações generalizadas de violência? O que legitima a violação dos direitos fundamentais das pessoas migrantes?
Ao tema da multiplicação das fronteiras e suas implicações para o fenômeno migratório é dedicado o Dossiê da Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana – REMHU, ano XXIII, n. 44, jan./jun. 2015.
Sandro Mezzadra, no artigo inicial, sublinha como a multiplicação e a heterogeneização das fronteiras colocaram em crise as taxonomias e as nomenclaturas utilizadas por policymakers e pesquisadores dos fluxos migratórios, o que exige a reformulação ou reinterpretação das categorias analíticas.
Essa crise epistêmica envolve também o conceito de fronteira, que não pode ser interpretado apenas como lugar geográfico. As fronteiras são também construções sociais, políticas e simbólicas. Paulo Cuttitta realça como as políticas migratórias, as relações internacionais e as práticas concretas de controle e gestão dos fluxos podem modificar o nível de “fronteirização” de um determinado lugar geográfico, como no caso específico da ilha de Lampedusa na Itália.
Nessa ótica, quando as divisas geográficas entre países não respondem mais às crescentes exigências de “fronteirização”, outras fronteiras são construídas ou inventadas. Vários artigos aprofundam essa temática. Maribel Casas-Cortes, Sebastian Cobarrubias e John Pickles abordam a assim chamada “externalização das fronteiras” da União Europeia; Martina Tazzioli analisa a imigração no sul da Itália beyond the sea, ou seja, levando em conta também as “fronteiras” nas terras de origem dos migrantes bem como aquelas que aparecem após a chegada no território italiano; Aída Silva Hernández aprofunda a questão da “fronteira horizontal” do México, sobretudo no que diz respeito à situação de crianças migrantes não acompanhadas; finalmente, Daniel Villafuerte Solís e María del Carmen García Aguilar analisam o recente desenvolvimento das políticas migratórias no eixo América Central-México-EUA.
Em todos os casos citados, há uma evidente diversificação e multiplicação de fronteiras, dentro e fora do território dos Estados em questão. Como lidar com esse renovado “desejo por distância”? Como fica a situação dos solicitantes de refúgio, que buscam acolhida, mas se deparam com muros, valas e barreiras? É legítimo “externalizar” as próprias fronteiras? As categorias analíticas utilizadas nos estudos da mobilidade humana levam em conta esses novos cenários dos processos migratórios?
As questões supracitadas não dizem respeito apenas à conjuntura internacional, mas também ao Brasil. Nos últimos anos, a assim chamada “nova imigração” tem levantado numerosos debates. A chegada de milhares de imigrantes haitianos, senegaleses, ganeses ou bengalis gerou, por um lado, atitudes de solidariedade e acolhida e, por outro, um clima alarmista e xenófobo.
Sobre essas temáticas debruça-se Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, que elabora um estudo comparado entre a migração subsaariana para Espanha e a migração haitiana para o Brasil, evidenciando como, em ambos os casos, os migrantes são vítimas de um sistema que produz exclusão e exploração. Sidney Antônio da Silva, por sua vez, aprofunda o fluxo de haitianos para a Fronteira Amazônica na ótica da “governamentalidade” e da distinção entre fronteiras sociais e fronteiras físicas. Finalmente, João Carlos Jarochinski Silva e Márcia Maria de Oliveira estudam a imigração na Amazônia a partir de três casos exemplares: os imigrantes regulares, os irregulares e aqueles à espera de regularização.
Na seção Artigos da revista REMHU 44, sob uma ótica interdisciplinar, são abordados diferentes temas. Primeiramente, Diego Acosta Arcarazo e Luisa Feline Freier analisam o assim chamado discursive gap entre os discursos oficiais dos governos e as políticas migratórias na Europa e na América do Sul, interrogando se os países do continente americano estão realmente mudando, no sentido liberal, o paradigma restritivo das políticas migratórias internacionais. Numa abordagem geográfica e demográfica, Weber Soares, Carlos Lobo e Ralfo Matos estudam os fluxos internacionais de imigrantes no Brasil nas décadas de 1991-2010, aprofundando o fenômeno da mobilidade interna mediante a utilização dos dados dos últimos Censos (1991, 2000 e 2010).
Ao tema do associativismo haitiano no Equador é dedicado o artigo de Mauricio Burbano Alarcón, que aprofunda o importante papel desenvolvido pelos grupos organizados de migrantes, sobretudo no âmbito da comunicação. Débora Mazza, por sua vez, elabora um estudo comparado entre dois instrumentos jurídicos: a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e a Diretiva de Retorno da União Europeia de 2008, evidenciando a mudança de paradigma que ocorreu no que diz respeito aos direitos dos migrantes. Por fim, Mariana Almeida Silveira Corrêa, Raísa Barcellos Nepomuceno, Weslley H. C. Mattos e Carla Miranda abordam o tema das políticas imigratórias no Brasil, realçando a necessidade de acolhida e proteção dos assim chamados “migrantes por sobrevivência”.
O psicanalista italiano Massimo Recalcati afirma que as fronteiras são necessárias para gerar identidade e sentido de pertencimento. No entanto, as fronteiras sadias são as fronteiras porosas, permeáveis, aquelas que permitem o encontro com a alteridade. Caso contrário, acabam aprisionando os privilegiados em seus cárceres narcisistas do medo.
Para ler os artigos, acesse:
MEZZADRA, S. MULTIPLICAÇÃO DAS FRONTEIRAS E DAS PRÁTICAS DE MOBILIDADE. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 11-30. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004402. Available from: http://ref.scielo.org/rrh5pf
CUTTITTA, P. LAMPEDUSA TRA PRODUZIONE E RAPPRESENTAZIONE DEL CONFINE. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 31-45. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004403. Available from: http://ref.scielo.org/mbw33j
CASAS-CORTES, M; COBARRUBIAS, S and PICKLES, J. CHANGING BORDERS, RETHINKING SOVEREIGNTY: TOWARDS A RIGHT TO MIGRATE. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 47-60. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004404. Available from: http://ref.scielo.org/z44y7p
TAZZIOLI, M. THE DESULTORY POLITICS OF MOBILITY AND THE HUMANITARIAN-MILITARY BORDER IN THE MEDITERRANEAN. MARE NOSTRUM BEYOND THE SEA. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 61-82. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004405. Available from: http://ref.scielo.org/b2x4v8
VILLAFUERTE SOLIS, D and GARCIA AGUILAR, M.C. CRISIS DEL SISTEMA MIGRATORIO Y SEGURIDAD EN LAS FRONTERAS NORTE Y SUR DE MÉXICO. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44 pp. 83-98. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004406. Available from: http://ref.scielo.org/z6rmp3
HERNANDEZ, A.S. ESTRATEGIAS DE TRÁNSITO DE ADOLESCENTES CENTROAMERICANOS INDEPENDIENTES: ENFRENTANDO LA FRONTERA VERTICAL EN MÉXICO. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 99-117. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004407. Available from: http://ref.scielo.org/fv66qg
SILVA, S.A. FRONTEIRA AMAZÔNICA: PASSAGEM OBRIGATÓRIA PARA HAITIANOS?. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 119-134. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004408. Available from: http://ref.scielo.org/kh3fjg
OLIVEIRA, A.T.R. Os invasores: as ameaças que representam as migrações subsaariana na Espanha e haitiana no Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 135-155. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004409. Available from: http://ref.scielo.org/q9cytr
SILVA, J.C.J and OLIVEIRA, M.M. MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS E DIREITOS NA AMAZÔNIA. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum.[online]. 2015, vol.23, n.44, pp. 157-169. [viewed 02nd July 2015]. ISSN 2237-9843. DOI: 10.1590/1980-85852503880004410. Available from: http://ref.scielo.org/dwrndw
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