Carolina Branco Castro Ferreira, pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e assessora de comunicação do cadernos pagu, Campinas, SP, Brasil
Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e editora do cadernos pagu, Campinas, SP, Brasil
Os artigos de Lia Zanotta Machado e de Lucía Ariza publicados no dossiê Conservadorismo, direitos, moralidades e violência, no nº 50 do cadernos pagu abordam os temas dos direitos reprodutivos e sexuais no Brasil e na Argentina, a partir de entradas diferentes, mas que, no entanto, se aproximam quando vistos a partir da articulação política entre diferentes e divergentes concepções de vida, de pessoa, de laicidade e acesso a direitos.
“La regulación de las tecnologías reproductivas y genéticas en Argentina: análisis del debate parlamentário”, escrito por Lucía Ariza analisa o discurso no âmbito do debate parlamentar em torno da regulação das tecnologias reprodutivas e genéticas (TRG) na Argentina, focalizando a complexidade da matriz de inteligibilidade por meio da qual tais tecnologias tornam-se matéria de regulação na Argentina.
Lia Zanotta Machado em “O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso neoconservador” analisa argumentações fundamentalistas religiosas em relação ao direito ao aborto no Brasil contemporâneo, apontando como tais argumentações têm se utilizado de recursos jurídicos, dos direitos humanos e científicos de forma desincorporar o debate sobre o aborto, relegando a vida vivida, ou seja, a diversidade de experiências sociais de mulheres, à invisibilidade nesse debate.
Para saber mais sobre esses temas e abordagens, entrevistamos Lucía Ariza e Lia Zanotta Machado (em vídeo) sobre os artigos publicados no nº 50 do cadernos pagu.
Tecnologias Reprodutivas e Genéticas: análise do debate parlamentar na Argentina – entrevista com Lucía Ariza
Lucía Ariza é socióloga e tem se dedicado aos estudos sociais da ciência e tecnologia na esfera da saúde, particularmente o desenvolvimento e implementação de biotecnologias na Argentina. Tem pesquisado em estabelecimentos privados e hospitais públicos que oferecem tratamentos de fertilidade de alta complexidade (ARIZA, 2014). Mais recentemente investiga as formas pelas quais a crescente disponibilidade de informação genética sobre o embrião e o feto tem reconfigurado noções de patologia, como parte de um construto cultural mais abrangente no qual a medicina é progressivamente entendida antes como prevenção do que como cura.
A seguir, Lucía Ariza comenta, especialmente para esta semana de divulgação, algumas questões relacionadas a seu artigo publicado no número 50 do cadernos pagu e a articulação com contextos e atores políticos na Argentina.
1. Lucía, qual seu tema de pesquisa atual?
Minha pesquisa mais recente é sobre o uso do Diagnóstico e Screening Genético Pré-Implantatório (PGD/PGS) na Argentina, uma técnica que permite conhecer a constituição genética de um embrião in vitro antes da sua transferência ao útero, o que supõe aspectos éticos relevantes para a prática médica. O uso dessas técnicas no campo das tecnologias reprodutivas tem implicado em decisões sobre que características biológicas merecem ser vividas e quais não. Bem como, tem levantando questões éticas relativas ao exercício das práticas médicas e sociais, enredado em dispositivos e agencias não somente humanas, e usualmente tais questões sequer tem sido apreendida como éticas.
2. Como você descreve a contribuição de seu artigo publicado no dossiê de número 50 do cadernos pagu?
Meu artigo aborda o discurso no debate parlamentar em torno da regulação das tecnologias reprodutivas e genéticas (TRG) na Argentina. Dou centralidade, ao que chamei de “matriz de inteligibilidade”, através da qual as TRGs tornaram-se matéria de regulação jurídica na Argentina. Meu argumento ressalta a complexidade envolvida nesse contexto, o qual se dá pela convivência de elementos que promoveram uma concepção ampla do “direito à procriação” através das TRGs, mas também fizeram uso de retóricas conservadoras: a ideia de família heterossexual; uma concepção limitada de identidade de gênero como cissexual; a centralidade da maternidade para a vida das mulheres; e “valores familiares” de corte tradicional. A análise desse debate indicou a contraposição de duas visões: a científica e a religiosa. A primeira argumentou em favor de uma diferenciação de noções de fertilização e de concepção, utilizando estratégias retóricas para distinguir o conceito de vida e o de pessoa. A visão religiosa envolveu definições que implicam o começo da pessoa humana na concepção e operou semanticamente de modo a assimilar a vida e a pessoa, outorgando à primeira valência e direitos próprios da segunda. Instrumentalizando a linguagem secular dos direitos, a visão religiosa obteve êxito na disputa, fazendo com que a definição de pessoa humana se desse nos mesmos termos que os definidos pela Igreja Católica.
3. Como os movimentos feministas na Argentina se posicionaram em relação ao debate das tecnologias reprodutivas e genéticas (TRG)?
O debate sobre TRG tem vários anos na Argentina, mas até a discussão da primeira lei sobre TRG, em 2010, esse era um debate fechado. Participavam somente médicos, alguns bioeticistas, uma ONG que representava grupos de pacientes, alguns advogados especializados, alguns religiosos, mas não havia a participação das feministas. Grupos de lésbicas vinham pensando sobre o tema, mas acho que não tanto em dialogo com a corporação médica, legal e bioética. É importante dizer que os primeiros projetos de legalização dessas tecnologias datam dos anos 1990, pouco depois do nascimento dos primeiros bebes concebidos pelas TRGs na Argentina. Esses projetos não tiveram, em geral, muita participação dos feminismos no país. Nos anos de 1980, os feminismos locais não estavam muito interessados nas TRGs. O debate passava muito mais pela autonomia reprodutiva, e essa autonomia era pensada mais em relação a práticas de anticoncepção e ao aborto do que em relação às TRGs. O feminismo local (como em outros países) sempre teve uma relação muito ambivalente com as TRG. E muitas vezes essa ambivalência se dava no sentido de rejeita-las e pensa-las como instancias de pura dominação do corpo das mulheres pelos médicos (principalmente homens), e de reprodução acrítica do ideal normativo da maternidade pelas mulheres. Isso foi um problema, porque esta posição das feministas sobre as TRG dificultou que elas se convertessem em atoras desse debate, em interlocutoras válidas. Outros grupos que também tinham uma postura crítica as TRG, como os de bioéticos, e alguns religiosos, lograram entrar na discussão, esses grupos foram pensados como naturalmente envolvidos na questão das TRG, mas não tanto as feministas.
4. Qual o papel dos ativismos LGBT nesse debate?
A questão é um pouco distinta no movimento LGTB e mais especificamente nos grupos políticos de lésbicas, porque aí sinto que sempre houve maior clareza a respeito das técnicas, mais como técnicas, precisamente, mais como meios do que é necessário para se apropriar e para conseguir autonomia, realizar demandas políticas, como o direito a maternidade, etc. Neste campo, se viu mais claramente que a questão das tecnologias são principalmente seus usos, isto é, uma concepção menos determinista a respeito da tecnologia. Nessa visão as tecnologias são possibilidades disponíveis para obter direitos, por exemplo, e com menos receio sobre o tema da instrumentalização do corpo feminino pela medicina.
Não é que não há criticas no movimento LGBT de como se maneja a reprodução assistida, não estou dizendo isso, mas acho que esses atores concebem a apropriação e os usos dessas tecnologias de modos distintos, que é diferente das posturas mais radicais do feminismo a respeito das TRGs. Isso obviamente deriva dos pontos em que as trajetórias do feminismo e de movimento LGBT são distintas, por exemplo, em relação à questão de como se pensou a maternidade (mais como uma obrigação no primeiro, mas como um direito no segundo).
Então, progressivamente as TRG começam a ser utilizadas pelas lésbicas para procriar, na Argentina existiu um banco de sêmen que foi estabelecido por Raymond Osés, um médico muito liberal que havia tido formação medica nos Estados Unidos. Ele tinha uma visão sem muitos preconceitos em relação ao uso das TRGs, incluindo a questão de cobrar pelos gametas. Ele tinha essa combinação de liberalismo econômico e político, cultural, e instalou o primeiro banco de sêmen da Argentina, e provia sêmen para casais heterossexuais das clinicas privadas, e pouco a pouco, também para lésbicas. Isso foi se incrementando com o tempo, e mais lésbicas foram acedendo ao sêmen, enriquecendo a apreensão política dessa questão como um direito nos grupos políticos de lésbicas.
A questão das TRGs como meios de apropriação de direitos se vai tornando visível na Argentina do princípio da década de 2000. Isso tem a ver com um contexto político, que em 2002 se sancionou na Cidade de Buenos Aires, a lei da União Civil que conferiu alguns direitos muito importantes e inéditos até esse momento para as pessoas LGBT, como o direito a aceder ao seguro de saúde dx companheirx, ter licencia por morte ou doença, receber pensão no caso da morte, etc. A lei da união civil não permitia adoção por um casal do mesmo sexo, acho que a partir daí a questão das TRG começa a ser muito importante e tida como uma possibilidade de consolidação de direitos nesse campo. Ao mesmo tempo, por mais “avançada” que seja a lei e sua regulamentação, nos aspectos que estamos conversando, muitas coisas ficaram sem resolver, talvez as coisas mais difíceis, e talvez na celebração do que foi essa lei considerada progressista, às vezes nos esquecemos da complexidade que jaz abaixo dela. Por isso é que eu falo de uma “matriz de inteligibilidade” que é complexa, e que é necessária ser levada em conta, porque ela explica muitas das falências da lei e sobre tudo o que aconteceu com a reforma do Código Civil argentino e a definição da pessoa.
Da vida abstrata à vida vivida – aborto como crime e aborto como direito – Entrevista com Lia Zanotta Machado
Lia Zanotta é professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB) e atual presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Ao longo de sua trajetória tem se dedicado a pesquisas com interface entre violência contra a mulher, saúde e direitos reprodutivos, violência domestica, gênero e família, antropologia do gênero, antropologia das políticas públicas de saúde e segurança, práticas jurídicas, e relações entre Estado e movimentos sociais no Brasil e América Latina (MACHADO, 2014; 2016). Assista em vídeo o relato da autora a respeito de sua contribuição para o número 50 do cadernos pagu:
Para ler os artigos, acesse
ARIZA, L. La regulación de las tecnologías reproductivas y genéticas en Argentina: análisis del debate parlamentario. Cad. Pagu [online]. 2017, n.50, e175005. [viewed 21 July 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500005. Available from: http://ref.scielo.org/yvdswm
MACHADO, L. Z. Abortion as a right and abortion as a crime: the neoconservative setback. Cad. Pagu [online]. 2017, n.50, e17504. [viewed 21 July 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500004. Available from: http://ref.scielo.org/tq5tq8
ARIZA, L. La construcción narrativa de la infertilidad. Mujeres que narran la experiencia de no poder concebir. Sex., Salud Soc. (Rio J.) [online]. 2014, n.18, pp.41-73. [Viewed 22 June 2017]. ISSN 1984-6487. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2014.18.05.a. Available from: http://ref.scielo.org/r648b9
MACHADO, L. Z. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas. Cad. Pagu [online]. 2016, n.47 e16471. [Viewed 22 June 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600470001. Available from: http://ref.scielo.org/8w7zvq
MACHADO, L. Z. Interfaces e deslocamentos: feminismos, direitos, sexualidades e antropologia. Cad. Pagu [online]. 2014, n.42, pp.13-46. [Viewed 22 June 2017]. ISSN 0104-8333. DOI: 10.1590/0104-8333201400420013. Available from: http://ref.scielo.org/37kjsj
Link externo
cadernos pagu – CPA: www.scielo.br/cpa
Sobre Carolina Branco de Castro Ferreira
Carolina Branco de Castro Ferreira é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, professora colaboradora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais e assessora de comunicação do cadernos pagu, todos na Unicamp. Pesquisa sobre gênero, sexualidade, prevenção DST/HIV e Aids, itinerários terapêuticos, processos saúde e doença, moralidades, teoria feminista e teoria antropológica. Campinas, São Paulo, Brasil.
Sobre Regina Facchini
Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pesquisadora do Núcleo de Estudos do Gênero Pagu, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Ciências Sociais da Unicamp. Atualmente é editora do cadernos pagu e diretora regional sudeste da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisa sobre gênero e sexualidade em suas articulações com movimentos sociais, violência, saúde, políticas públicas e produção de conhecimento científico. Campinas, São Paulo, Brasil.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Últimos comentários