Jimena Felipe Beltrão, Jornalista, Ph.D. em Ciências Sociais (University of Leicester, Reino Unido), editora científica do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, PA, Brasil
Silvia de Souza Leão, Jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA, Brasil
Os artigos e referências sobre produtos cuja exploração são marcados temporal e espacialmente como o caucho, a balata, a hévea, a sarrapia e outros revelam além das produções materiais, todo um sistema social complexo e que exige acuidade dos pesquisadores para revelá-los, tanto quanto dos elaboradores e executores de políticas públicas.
Os usos de produtos amazônicos para fins de aspectos fundamentais da existência como a alimentação, o vestuário, a habitação, os ditos, os ritos, a atividade comercial de curto ou longo circuito, são temas frequentes no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas.
Como exemplo, tomam-se os artigos sobre a balata [Manilkara bidentata (A.DC.) A. Chev.] e sobre o cumaru [Dipteryx odorata (Aublet.) Willd.] para propor uma reflexão o domínio e apropriação desses produtos: “‘Passaporte para a floresta’: a regulação do extrativismo de balata na Floresta Estadual do Paru, estado do Pará, Brasil” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018) e “Las estaciones sarrapieras: los Mapoyo y las economías extractivas del Orinoco Medio, Venezuela” (TORREALBA; SCARAMELLI, 2018).
O bom senso, a justiça e quem entende como necessária a relação sociedade natureza indicam os detentores dos estoques. Já a regulação tem se contraposto à tradição. A observância da legislação de acesso aos recursos naturais num chamamento de Estado, no entanto, leva a que grupos cuja subsistência está imbricada à extração de recursos naturais tenha que obter vistos para transitar em áreas antes de seu domínio.
Em “Passaporte para a floresta: a regulação do extrativismo de balata na Floresta Estadual do Paru, estado do Pará, Brasil” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018) discute-se a situação de balateiros, extratores de seringa, pós-apogeu da borracha. Enfurnados nas matas durante mais de seis meses por ano – no período das chuvas amazônicas – grupos de exploradores desse recurso, oriundo da balateira [Manilkara bidentata (A.DC.) A. Chev.], alimentam uma rede de produção de bens reconhecidos da cultura imaterial regional, os objetos artesanais representativos da vida amazônica. A pesquisadora Luciana Gonçalves de Carvalho, autora do referido artigo estuda e nos apresenta a exploração da balata em Monte Alegre e “sua regulamentação e formalização de juridicização das relações antes regidas informalmente entre os grupos”. A seguir o vídeo de Luciana Gonçalves de Carvalho.
A autora explica, nesse texto, que não só da seringa se retirava o látex. Também se fez retirada do “’[…] sumo viscoso […]’ da figueira (Ficus elastica) pelos Omagua (MARCOY, 2006 [1869]), da maçaranduba (Manilkara huberi), do sapotizeiro (Manilkara zapota ou Achras zapota) e da balateira (Manilkara bidentata) (SIMONIAN, 2006), que, por sua vez, também foi registrado na Venezuela, nas Guianas, na Costa Rica e nas Antilhas” (BRANNT, 1900; TERRY, 1907). Se nos reportarmos a outros autores, veremos que o leque de produção lactífera é bem mais amplo do que o citado.
A atividade econômica, estudada pelos autores, apontou que a extração da balata era praticada desde os tempos pré-coloniais por grupos indígenas Arawak e Karib, que a utilizavam na produção de ornamentos. Luciana explica que toda a cadeia produtiva da balata era agenciada por patrões locais, conectados a patrões regionais, que, por sua vez, se ligavam a patrões estrangeiros. O sistema conhecido pelo nome de aviamento é: “Um sistema de mobilização de mão de obra (baseado no endividamento continuado dos trabalhadores) e de circulação de moeda e de bens materiais, mas também de valores como honra, fidelidade e prestígio (MIYAZAKI; ONO, 1958; WAGLEY, 1977). De acordo com Aramburu (1994), o aviamento praticado desde o século XIX ‘[…] se consolidou como sistema de comercialização e se constituiu em senha de identidade da sociedade amazônica [durante o ciclo da borracha]’”. Extrapolando a reflexão para outros períodos históricos, inclusive atualizado, vê-se perpetuado um tipo de servidão que está longe de ser rompido. Popularmente chamado de aviamento, esse sistema foi imposto em inúmeras atividades produtivas na Amazônia, principalmente no longo período histórico em que a economia regional foi muito pouco monetarizada. A pesquisadora aponta que essa relação de trabalho tornava o cidadão um aviado e, ao mesmo tempo, um “endividado – moralmente comprometido com o patrão” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018, p. 265).
As atividades exercidas no balatal envolviam, resumidamente, o corte das árvores, o beneficiamento (cozimento, limpeza e produção) de blocos de balata – que pesam, em média, 50 quilos cada –, o carregamento dos blocos até o rio e o transporte deles, por vias fluvial e terrestre, até a cidade de Monte Alegre. “Se, entre os anos 1930 e 1970, os balatais forneciam a matéria-prima mais importante da balança comercial monte-alegrense, na atualidade, eles são a fonte de um artesanato reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Pará” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018, p. 286).
Antes subordinados a um sistema de aviamento que guarda semelhança com o trabalho escravo, com endividamento para toda a vida, hoje, os extratores do recurso, organizados em associações, precisam contribuir e pertencer a um sistema de organização do trabalho imposto pela legislação. “A meta de cada homem era extrair, no mínimo, uma tonelada de látex para quitar as dívidas com o patrão e, ainda, ficar com algum dinheiro em mãos” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018, p. 267). Por um lado, a norma visa proteger as florestas, mas também é responsável por forçar que os donos originais das terras e dos recursos tenham que se credenciar para utilizá-los.
“De outro ponto de vista, significa a sujeição a regras cuja elaboração lhes escapa e que, por sua natureza, restringem seu modo de vida. A obrigação de ‘tirar passaporte para a floresta’, para aqueles que se consideram ‘primatas de lá’, soa a eles como contrassenso. Nessa medida, o termo de uso, que pretende compatibilizar os usos da floresta por empresas e balateiros, frustra as expectativas de direitos destes últimos, além de se mostrar como um instrumento insuficientemente adequado à realidade do grupo em questão” (CARVALHO; SOUZA; CUNHA, 2018, p. 288).
Barracão e estación sarrapiera — Diferentemente do que ocorreu no auge da exploração do látex na Amazônia brasileira, na Venezuela, no que tange à exploração do cumaru, autores como Henley (1975; 1983) e Scaramelli e Tarble (2000) argumentam que, ali, não foram impostos, ao regime de trabalho, os níveis de terror impostos às populações indígenas que extraíam látex. Ao citar os autores, Gabriel Torrealba, candidato a Ph.D. em antropologia pela Southern Illinois University-Carbondale, juntamente com seu co-autor, discute em “Las estaciones sarrapieras: los Mapoyo y las economías extractivas del Orinoco Medio, Venezuela” parte das transformações na vida de populações indígenas diante das atividades de extração de recursos naturais. Entre um barco que, ao se deslocar pelos rios, fazia as vezes de ponto de referência nas relações de subordinação dos coletores de borracha e a “casa, tienda o bodega que se construía (y abandonaba) cada año a las puertas de las zonas selváticas donde se encontraban los sarrapiales” (TORREALBA; SCARAMELLI, 2018), pouca diferença se pode observar. No sistema de coleta e fornecimento de bens primários está também o princípio do endividamento que preconiza troca, mas, de fato, estabelece dependência. Para Torrealba e Sacaramelli (2018), no entanto, mesmo sendo as mercadorias apresentadas aos extrativistas a preços muito altos, as dívidas não eram responsáveis por estabelecer um regime de traços semelhantes a trabalho escravo: “La fuerza laboral llegaba por voluntad propia, y posiblemente, la finalidad de los avances consistía en garantizar el retorno de la deuda ahora convertida en sarrapia” (TORREALBA; SCARAMELLI, 2018, p. 306). Assista no vídeo o depoimento de Gabriel Torrealba.
Dentre os Mapoyo não houve casos de dívidas impagáveis, afirmam Torrealba e Scaramelli (2018). De acordo com a análise dos autores e semelhante ao que afirma Carvalho, Souza e Cunha (2018), as dívidas se constituíam em comprometimento moral, mas, dentre os Mapoyo, dizem Torrealba e Scaramelli (2018), no mais das vezes, o endividamento era resolvido de forma pacífica. Dizem os autores ainda que: “Si bien la estación sarrapiera fue un mecanismo de movilización de fuerza de trabajo, su función primordial consistió en efectuar el intercambio de sarrapia por productos manufacturados” (TORREALBA; SCARAMELLI, 2018).
Os autores argumentam que há um contraste entre o modo de exploração do cumaru e a violência que marcou a exploração da borracha na Amazônia. Para eles essa característica de não violência “supone la existencia de una gran diversidad de contextos geográficos e históricos vinculados al extractivismo em Suramérica que necesitan ser examinados más allá de los escenarios del terror cauchero”.
Significado – De mercadoria à moeda. Os bens primários assumiram ao longo dos tempos condição de unidade monetária. Ademais, segundo os estudos sobre látex e cumaru encontrados nos dois artigos aqui discutidos, é relevante identificar o que os espaços físicos e de atuação econômica representam para os agentes. De forma surpreendente, as visões se aproximam. Para os mapoyo da Venezuela: “Hoy en día, la representación espacial del territorio mapoyo está claramente marcada por la identificación de sarrapiales, los cuales son también reconocidos por otros grupos como ‘sarrapiales mapoyo’. Para los mapoyo cada sarrapial posee un nombre y estos sitios son a su vez el escenario de muchos de los relatos y eventos que forman parte de la tradición oral de este grupo indígena, siendo hoy en día verdaderos símbolos de su arraigo territorial” (TORREALBA; SCARAMELLI, 2018).
Já no oeste da Amazônia brasileira, Carvalho, Souza e Cunha (2018) colheram depoimento de Luís Antônio Vasconcelos, Jacurutu, balateiro (in UFOPA, 2017, p. 54) revelador do significado do território e de suas riquezas: “Encontrávamos e tirávamos fruta para comer. Até a fruta da balata eu usei! Minério também se encontrava, mas era só ametista e nós não tirávamos. E tinha muito peixe e muita caça. Para lá você sente o perfume da manhã, de flores. Tudo aquilo é uma beleza”
A despeito das diferenças de interpretação sobre as condições e as relações de trabalho na extração do cumaru e do látex, há um fator comum de que, desde tempos ancestrais a matéria prima exerce o poder de aliviar as necessidades de sobrevivência em ambientes de natureza inóspita ao ser humano e não seria isso diferente entre populações da porção sul do continente americano.
Ainda no tema da exploração dos recursos naturais, o artigo “O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) no periódico “A Informação Goyana” (1917-1935)”, examina fotografias publicadas em revista da época como indicativo de medidas governamentais de promoção da “integração do estado de Goiás ao Brasil”. André Vasques-Vital e Francisco Tejerina-Garro, autores do estudo, refletem sobre o uso das imagens para “exaltar a biodiversidade de animais aquáticos que habitavam os rios de Goiás, o tamanho e o peso dos pirarucus da bacia do Araguaia e o potencial de sua pesca em larga escala para o desenvolvimento econômico do estado”. Veja em vídeo o que dizem os autores. Para saber mais, assista os vídeos de André Vasques-Vital e Francisco Tejerina-Garro.
Referências
ARAMBURU, M. Aviamento, modernidade e pós-modernidade na Amazônia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 9, n. 25, 1994. ISSN: ISSN 0102-6909 [viewed 9 November 2018]. Available from: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_25/rbcs25_09.htm
HENLEY, P. Wanai: aspectos del pasado y del presente del grupo indígena Mapoyo. Antropológica, v. 42, p. 29-55, 1975.
HENLEY, Paul. Los Wánai (Mapoyo). In: HENLEY, Paul; COPPENS, Walter (Ed.). Los aborígenes de Venezuela. Caracas: Fundación La Salle, 1983. v. 2, p. 217-241.
MARCOY, P. Viagem pelo rio Amazonas. Manaus: EdUA, 2006 [1869].
MIYAZAKI, N. and ONO, M. O aviamento na Amazônia: estudo sócio-econômico sobre a produção de juta (II). Sociologia: revista dedicada à teoria e pesquisa nas Ciências Sociais, v. 20, n. 4, p. 530-563, 1958.
SCARAMELLI, F. and TARBLE, K. Cultural change and identity in Mapoyo burial practice in the Middle Orinoco, Venezuela. Ethnohistory, v. 47, n. 3-4, p. 705-729, 2000. e-ISSN: 1527-5477 [reviewed 9 November 2018]. DOI: 10.1215/00141801-47-3-4-705. Avaliable from: https://read.dukeupress.edu/ethnohistory/article-abstract/47/3-4/705/8219/Cultural-Change-and-Identity-in-Mapoyo-Burial?redirectedFrom=fulltext
SIMONIAN, L. T. L. Relações de trabalho e de gênero nos balatais da Amazônia brasileira. In: SCHERER, E.; OLIVEIRA, J. A. de (Orgs.). Amazônia: políticas públicas e diversidade cultural. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 195-232.
TERRY, H. L. India-Rubber and its manufacture: with chapters on gutta-percha and balata. London: Archibald Constable & Co. Ltd, 1907.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ-UFOPA. Balata: natureza e cultura de Monte Alegre: catálogo. Santarém: UFOPA, 2017. Available from: https://issuu.com/publicacoesufopa/docs/balata_-_cat__logo
WAGLEY, C. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. Tradução de Clotilde da Silva Costa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
Para ler os artigos, acesse
CARVALHO, L. G., SOUZA, B. R. G. and CUNHA, A. P. A. ‘Passaporte para a floresta’: a regulação do extrativismo de balata na Floresta Estadual do Paru, estado do Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.261-291. ISSN 1981-8122. [viewed 27 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200002. Available from: http://ref.scielo.org/47rmhf
VITAL, A. V. and TEJERINA-GARRO, F. L. O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista “A Informação Goyana” (1917-1935). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.1, pp.159-174. ISSN 1981-8122. [viewed 27 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000100009. Available from: http://ref.scielo.org/yg3cpm
TORREALBA, G. and SCARAMELLI, F. G. Las estaciones sarrapieras: los Mapoyo y las economías extractivas del Orinoco Medio, Venezuela. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.293-314. ISSN 1981-8122. [viewed 27 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200003. Available from: http://ref.scielo.org/27tnhd
Links externos
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: www.scielo.br/bgoeldi
Boletim: www.editora.museu-goeldi.br/humanas
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Sobre André Vasques-Vital
Doutor em História das Ciências e da Saúde, pelo Programa de História das Ciências e da Saúde (PPGHCS). Atualmente cumpre estágio pós-doutoral com bolsa PNPD/CAPES no Centro Universitário de Anápolis – GO. Seus atuais interesses de pesquisa concentram-se na presença das águas e dos animais aquáticos como agentes ativos na História, por meio de abordagens de caráter inter e transdisciplinar. E-mail: vasques_vital@tutanota.com
Sobre Francisco Tejerina-Garro
Doutor em Ecologia de Sistemas Aquáticos Continentais – Université Montpellier 2 – Sciences et Techniques. Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do Centro Universitário de Anápolis – UniEvangélica, também é professor colaborador no Programa de Mestrado e Doutorado em Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Goiás. Seus temas de interesse são: qualidade ambiental, índices de integridade biológica, ecotoxicologia, assembléias de peixes neotropicais, interações organismo-habitat. E-mail: garro@pucgoias.edu.br
Sobre Gabriel Torrealba
Gabriel Torrealba Alfonzo é graduado em Antropolgia pela Universidad Central de Venezuela e Mestre em Antropologia pelo Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas (2011). Atualmente é candidato a Ph.D. em Antropologia na Southern Illinois University-Carbondale, EUA. E-mail: gtorrealba@siu.edu
Sobre Luciana Gonçalves de Carvalho
Doutora em Ciências Humanas-Antropologia e professora na Universidade Federal do Oeste do Pará e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. É autora de publicações sobre patrimônio cultural imaterial, cultura popular, memória, trabalho e conhecimentos tradicionais em comunidades amazônicas, bem como de relatórios técnicos, laudos e outros estudos antropológicos em processos de regularização fundiária, disputa territorial e conflito socioambiental. E-mail: luciana.gdcarvalho@gmail.com
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