Rompendo fronteiras: acadêmicos de medicina experenciam vivências na comunidade indígena Potiguara, Paraíba

Willian Fernandes Luna, Professor do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

Alice Ribeiro Viana de Carvalho, Médica da Estratégia de Saúde da Família, Cabedelo, PB, Brasil

O Projeto de extensão Iandé Guatá oportunizou espaços dialógicos e interculturais ao trabalhar com os indígenas Potiguara entre os anos de 2013 a 2015, com realização de atividades mensais na comunidade, realizadas durante todo o sábado, e com encontros teórico-reflexivos semanais na faculdade. A opção pelo desenvolvimento desta extensão universitária com os indígenas justificou-se pelo reconhecimento de que essas populações são negligenciadas pelos currículos de Medicina e, muitas vezes, pelas políticas públicas, somando-se ao desejo dos estudantes de trabalharem com grupos minoritários e desconhecidos. O principal referencial teórico que sustentou a experiência foi a Educação Popular, na defesa de uma educação baseada no diálogo, numa constante troca entre os distintos saberes (FREIRE, 2014).

O artigo “Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara” publicado pelo periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação (v. 23), traz um relato de experiência sobre o Projeto de Extensão, construído a partir de narrativas dos estudantes extensionistas, mediante abordagem qualitativa. A construção do artigo foi desenvolvida pelos professores coordenadores e dois ex-extensionistas. O foco do manuscrito está na identificação e análise das vivências mais significativas para os extensionistas no encontro intercultural com os indígenas Potiguara.

A construção deste relato foi realizada da seguinte forma. Momento 1: inicialmente, realizou-se imersão junto aos materiais da pesquisa: 14 relatórios de atividades (construídos após cada visita à comunidade indígena) e 18 narrativas redigidas pelos extensionistas ao final de sua participação no Projeto. Momento 2: cada pesquisador construiu individualmente mapas conceituais sobre as experiências coletivas que, a partir da leitura dos materiais, apresentaram-se como mais significativas. Momento 3: esses mapas foram apresentados em reunião dos pesquisadores, sendo selecionadas coletivamente as quatro vivências mais significativas expressas nos documentos. Momento 4: descrição e discussão das quatro vivências, com uso dos mesmos materiais do momento 1, atribuindo nomes fictícios de acordo com o gênero para identificar as narrativas dos extensionistas. Buscou-se a identificação de sentidos, significados e valores em relação às vivências, a partir da visualização em núcleos de sentido.

As quatro vivências destacadas são apresentadas abaixo:

Vivência 1. “Vestindo o cocar”:  a experiência do encontro com o universo indígena e a possibilidade da construção compartilhada são discutidas, com destaque ao diálogo de diferentes saberes;

Vivência 2. “Debaixo das caramboleiras enquanto chovia”: as diferentes perspectivas sobre o cotidiano para indígenas e não indígenas são apresentadas, inclusive adentrando a experiência de contato com a cosmologia indígena;

Vivência 3. “Pintados com tinta de jenipapo”: os estudantes de Medicina puderam experienciar o sentimento de militância a partir do momento que tiveram seus corpos pintados com símbolos indígenas, enfrentando também preconceitos por parte dos não indígenas;

Vivência 4. “Pisando na terra esquecida entre latifúndios”: para construir uma ação de saúde em área não demarcada os extensionistas assumiram o compromisso com aquela comunidade, culminando no seu próprio reconhecimento enquanto cidadãos.

Após o final do ciclo do Projeto Iandé Guatá, a caminhada individual dos ex-participantes será sempre diferente. Possivelmente mais humana, crítica e cidadã.

Neste Projeto a extensão universitária foi compreendida como uma estratégia potente para aproximar a formação médica das necessidades da população indígena, contribuindo com o processo dialógico de teoria/prática e construção interdisciplinar de saberes.

No Brasil, as escolas médicas pouco contribuem para a atuação dos futuros profissionais com diferentes culturas e povos. Reflexo disso é o despreparo de docentes e estudantes para lidarem com as singularidades relativas a grupos de minorias sociais. As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais de Medicina avançaram ao indicar a necessidade de se oportunizarem aprendizados sobre o respeito ao pluralismo de concepções de saúde-doença e a diversidade cultural relacionado a questões étnico-raciais (BRASIL, 2014), no entanto, ainda pouco se construiu nesse sentido.

Atualmente, são mais de novecentos mil indígenas que vivem em todos os estados do Brasil, cerca de 255 diferentes povos, falantes de mais de 150 línguas, o que expõe a complexidade da formação para atuar nesse campo. Os Potiguara fazem parte dos povos do tronco linguístico Tupi, com uma população de aproximadamente 19 mil indígenas na Paraíba. Mantêm sua identidade étnica por meio de manifestações culturais, organização comunitária e reaprendizado da língua Tupi, tendo sua economia baseada no manejo de mangues, roças e matas, além do turismo e artesanato (CARDOSO; GUIMARÃES, 2012). A atenção à saúde dos indígenas na Paraíba é realizada pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Potiguara.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº3, de 20 de junho de 2014. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Medicina. Brasília, DF: MEC, 2014.

CARDOSO, T. M.; GUIMARÃES, G. C. Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba. Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012.

FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

Para ler o artigo, acesse

LUNA, W. F. et al. Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara. Interface (Botucatu), v. 23, e180576, 2019. ISSN: 1414-3283 [acessado 22 julho 2019]. DOI: 10.1590/interface.180576. Available from: http://ref.scielo.org/78rmvx

Links externos

Interface – Comunicação, Saúde, Educação – ICSE: www.scielo.br/icse

ISA – Instituto Socioambiental: https://www.socioambiental.org/pt-br

Vivências de extensão em educação popular no Brasil: https://issuu.com/vepopsus/docs/viv_ncias_de_extens_o_em_educa__o_p

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

LUNA, W. F. and CARVALHO, A. R. V. Rompendo fronteiras: acadêmicos de medicina experenciam vivências na comunidade indígena Potiguara, Paraíba [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/08/14/rompendo-fronteiras-academicos-de-medicina-experenciam-vivencias-na-comunidade-indigena-potiguara-paraiba/

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation