África e Brasil: histórias e teorias cruzadas

Ana Maria Veiga, Professora de Teoria da História na Universidade Federal da Paraíba, Editora dos periódicos Saeculum e Revista Estudos Feministas, João Pessoa, PB, Brasil

Não é de agora que o interesse pela África e pelas relações entre esse continente tão diverso e o Brasil rende artigos, ensaios e dossiês publicados nas páginas da Revista Estudos Feministas (REF) ao longo desses 27 anos de existência, embora a temática venha ganhando força nos últimos anos (volumes).

Lá em meados dos anos 1990 já encontramos o dossiê “Mulheres Negras”, onde um dos artigos – “Iyámi Iyás Agbás: dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos”, de Lourdes Siqueira – faz uma primeira aproximação dos temas abordados pela revista com a cultura afro-brasileira (1995, v. 3, n. 2). A autora visava aprofundar o olhar sobre o papel das mulheres negras nos processos sócio-político-culturais desenvolvidos no Brasil na relação com a herança africana (SIQUEIRA, 1995).

Timidamente ainda, a REF começava a abrir um caminho que se alargaria no sentido de esboçar essas relações entre Brasil e África. Destacarei a seguir alguns dos artigos que trouxeram importantes reflexões e perspectivas diversas sobre essa temática.

Em 2002 (v. 10, n. 1), Maylei Blackwell e Nadine Naber se propunham a analisar a interseccionalidade como uma abordagem feminista com importante impacto nos discursos e debates durante o Fórum de ONGs e a Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, África do Sul, com o artigo intitulado “Interseccionalidade em uma era de globalização: as implicações da Conferência Mundial contra o Racismo para práticas feministas transnacionais” (BLACKWELL; NABER, 2002).

Em 2016 a REF mostrou interesse crescente em tratar das relações entre Brasil e África de maneira comparada. Podemos perceber isso principalmente no volume 24, número 3, por meio de dois artigos. O primeiro é assinado por Ângela Figueiredo e Patrícia Godinho Gomes e foi intitulado “Para além dos feminismos: uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil”, sendo que nele as autoras entendem que os próprios conceitos de raça e de racismo assumem dinâmicas diferenciadas nas duas sociedades. No entanto, oferecem uma análise comparada, considerando a mesma origem colonial portuguesa, para compreender em que medida essas duas realidades apresentam cenários similares no que tange às lutas ideológicas, políticas e sociais das mulheres (FIGUEIREDO; GOMES, 2016). O segundo artigo é de Denise Ferreira da Costa Cruz em “Algumas notas sobre bonecas para mulheres ‘negras’ em Maputo”. No texto, a autora interroga o lugar que as bonecas ocupam na formação da subjetividade de mulheres “negras” moçambicanas, em um contexto em que predomina a distribuição comercial de bonecas loiras, com as quais as crianças negras não se identificam (ou se identificam em uma relação de subalternidade) e que servem para reforçar estereótipos e a hierarquia social de padrões de beleza, além de construir a distinção racial (CRUZ, 2016).

No volume 26, número 3 de 2018, o artigo “Descolonização, feminismos e condição queer em contextos africanos”, de Catarina Rea, faz um primeiro mapeamento do campo de estudos sobre sexualidades e teoria queer em contextos africanos. A autora percebe que os jovens acadêmicos africanos iniciam a produção de novas teorias, capazes de dar conta da complexidade de seus contextos localizados e específicos, repensando a problemática queer a partir do Sul (REA, 2018).

Também em abordagem atualizada, Simone Pereira Schmidt e Ana Gabriela Macedo organizam no número 1 de 2019 (v. 27) da REF uma seção temática que aborda as relações entre África e Brasil principalmente por meio da literatura. Sendo uma das editoras internacionais da revista, Simone Schmidt assina o artigo “Mulheres, negritude e a construção de uma modernidade transnacional”, em que discute os desdobramentos da “negritude” em diferentes momentos históricos, nos quais o conceito é ressignificado através de interpretações que atendem às demandas políticas e culturais de cada contexto. Com essa proposta, a autora aborda as vozes poéticas de Noémia de Sousa, inserida no ambiente português e africano dos anos 1950, e da cantora brasileira Luedji Luna, que retoma questões centrais do mesmo tema no contexto brasileiro pós-ações afirmativas (SCHMIDT, 2019).

Em outro texto do mesmo bloco de discussões (v. 27, n. 1), Márcia de Almeida trabalha com “Autoria feminina na literatura pós-colonial italiana: um projeto feminista” dando ênfase à a preponderância da voz feminina nessa literatura e ao projeto feminista, que ela entende como implícito nessas produções, analisando obras de escritoras provenientes de ex-colônias italianas na África (ALMEIDA, 2019).

Catarina Caldeira Martins analisa como as mulheres escritoras e poetizas africanas criam novas gramáticas poéticas nas quais ostentam as suas feminilidades, a sua nudez e a pele negra como lócus de articulação da violência e da resistência. No artigo “Corpos nus de mulheres negras: eixos poéticos e políticos da escrita de mulheres africanas lusófonas”, a autora argumenta que a ordem social colonial era legitimada pelas corporalidades das mulheres, discursivamente construídas, e que essa base para o poder masculino não se modifica com os processos de independência dos países africanos (MARTINS, 2019).

Com base nos exemplos citados, podemos entender que o interesse pelas relações entre África e Brasil estão em ascensão, marcando forte presença nas últimas edições da REF lançadas em 2019. A relevância da temática sinaliza que a internacionalização, na perspectiva das editoras da revista, não acontece apenas em busca de uma língua considerada hegemônica – o inglês (e a Englishness) – mas também nos diálogos Sul-Sul, permeados necessariamente pela perspectiva decolonial e interseccional.

Referências

ALMEIDA, M. de. Autoria feminina na literatura pós-colonial italiana: um projeto feminista. Rev. Estud. Fem., v. 27, n. 1, e58952, 2019. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n158952. Available from: http://ref.scielo.org/536sdx

BLACKWELL, M. and NABER, N. Interseccionalidade em uma era de globalização: As implicações da Conferência Mundial contra o Racismo para práticas feministas transnacionais. Rev. Estud. Fem., v. 10, n. 1, p. 189-198, 2010. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100012. Available from: http://ref.scielo.org/fgtyyb

CRUZ, D. F. da C. Algumas notas sobre bonecas para mulheres “negras” em Maputo. Rev. Estud. Fem., v. 24, n. 3, p. 929-940, 2016. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2016v24n3p929. Available from: http://ref.scielo.org/7k35j7

FIGUEIREDO, A. and GOMES, P. G. Para além dos feminismos: uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil. Rev. Estud. Fem., v. 24, n. 3, p. 909-927, 2016. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2016v24n3p909. Available from: http://ref.scielo.org/2th6y2

MARTINS, C. I. C. Corpos nus de mulheres negras: eixos poéticos e políticos da escrita de mulheres africanas lusófonas. Rev. Estud. Fem., v. 27, n. 1, e58880, 2019. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n158880. Available from: http://ref.scielo.org/k2cg69

REA, C. A. Descolonização, feminismos e condição queer em contextos africanos. Rev. Estud. Fem., v. 26, n. 3, e48439, 2018. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2018v26n348439. Available from: http://ref.scielo.org/z6jvz2

SCHMIDT, S. P. Mulheres, negritude e a construção de uma modernidade transnacional. Rev. Estud. Fem., v. 27, n. 1, e58957, 2019. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n158957. Available from: http://ref.scielo.org/h9mdrd

SIQUEIRA, L. Iyámi Iyás Agbás: dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. Rev. Estud. Fem., v. 3, n. 2, p. 436-445, 1995. ISSN: 0104-026X [viewed 31 October 2019]. Available from: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/download/16455/15032

Link externo

Revista Estudos Feministas – REF: www.scielo.br/ref

Sobre Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga

Ana Maria Veiga é professora do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, com pós-doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. É editora dos periódicos Saeculum e Estudos Feministas e líder do grupo ProjetAH: História das mulheres, Gênero, Imagens, Sertões. É roteirista e editora dos vídeos postados na Semana Especial da REF. E-mail: anaveiga.ufpb@gmail.com

 

Sobre Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf

Fernanda Backendorf é aluna do curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. É cinegrafista e editora dos vídeos da Semana Especial da REF. E-mail: fernandabackendorf@gmail.com

 

 

 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

VEIGA, A. M. África e Brasil: histórias e teorias cruzadas [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/11/01/africa-e-brasil-historias-e-teorias-cruzadas/

 

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