Os riscos e desafios para a Ciência Aberta e as métricas alternativas na América Latina

Leonardo Cazes, Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF),  Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

A edição especial “Métricas alternativas e Ciência Aberta na América Latina”, do periódico Transinformação, da qual Thaiane Oliveira, que é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, foi editora-convidada, traça um panorama dos estudos sobre o tema na região e apresentam propostas para a construção de modelos de produção do conhecimento científico mais abertos, plurais e inclusivos. Nesta entrevista, a professora explica os pilares da Ciência Aberta, a contribuição latino-americana para o movimento e os riscos e desafios que se apresentam num momento em que a ciência sofre uma série de ataques e tentativas de minar sua credibilidade.

Desde 2017, Thaiane vem se dedicando aos estudos relacionados às condições de produção, circulação e recepção da ciência, com ênfase em divulgação científica num contexto de crise epistêmica e métricas alternativas para a avaliação da produção científica.

 

1) “Ciência Aberta” é um termo de múltiplos sentidos e que tem sido apropriado por diferentes atores do ecossistema de CT&I. Afinal, do que estamos falando quando falamos de Ciência Aberta? É possível enumerar os pilares da Ciência Aberta?

Ciência Aberta é geralmente entendido como um termo guarda-chuva, que fiz respeito a abertura de publicações, de dados de pesquisa, de metodologias, de códigos de softwares, de avaliações científicas, ente outros. Esses são os pilares da Ciência Aberta: Acesso Aberto, Dados Abertos, Investigação e Inovação Abertas, Redes Abertas de Ciência e Ciência Cidadã. Comumente é relacionada aos avanços tecnológicos que permitiram novas possibilidades de se publicar não apenas os resultados finais das investigações científicas, mas um amplo conjunto de informações de todo o processo de realização das pesquisas científicas, desde a coleta de dados às avaliações por pares, tudo de maneira aberta e transparente. A Ciência Aberta permite a possibilidade de partilhar o conhecimento científico com toda a sociedade. Costuma ser atrelada a algumas vantagens como a possibilidade de ampliação de reconhecimento da relevância da ciência, de extrema importância em um momento em que vivemos uma crise epistemológica na qual se coloca em dúvida os preceitos mais básicos da ciência, e o aumento do impacto social e econômico da ciência, um dos imperativos complexos de avaliação da ciência atualmente, e que precisa de mais reflexão sobre.

2) As novas tecnologias da comunicação e da informação são peças fundamentais para o movimento da Ciência Aberta. De que maneira essas mediações/midiatizações das produções científicas, do fazer científico e dos próprios cientistas têm transformado a circulação da ciência e impulsionado a Ciência Aberta? 

As novas tecnologias impulsionam a Ciência Aberta a partir da disponibilidade de ferramentas e infraestruturas para a pesquisa colaborativa e a livre circulação de seus processos e resultados de pesquisa. Plataformas de hospedagens de códigos abertos e repositórios para depósitos de dados de pesquisa ou de preprints são exemplos de como as novas tecnologias permitiram o avanço da publicação dos processos de investigação e não apenas dos resultados de pesquisa. Se antes dos avanços tecnológicos o cientista era dependente da mídia massiva para a publicação dos resultados de suas investigações – e por sua vez dependente de uma agenda midiática que definia o que era interessante ou não ser publicado –, a possibilidade de utilização das plataformas digitais pelos próprios pesquisadores permitiu um maior protagonismo do próprio cientista na divulgação de suas investigações, buscando aumentar a visibilidade e aumento de circulação da ciência. Redes sociais acadêmicas e não-acadêmicas passaram a ser amplamente utilizadas pelos cientistas, reflexo de uma sociedade midiatizada, ou seja, dependente da visibilidade como critério de reconhecimento, uma das bases sociais da vida democrática, segundo Axel Honneth (2014).

3) Qual é o lugar do movimento pela Ciência Aberta num contexto mais amplo da luta pela democratização do conhecimento nas sociedades?

Apesar de frequentemente estar vinculado aos avanços tecnológicos, mais do que transformações propiciadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação, a Ciência Aberta diz respeito a uma mudança de postura moral de toda a sociedade, inclusive os cientistas. Refletem alguns imperativos morais como responsabilização e transparência, valores extremamente importantes para o momento em que vivemos, mas que se relacionam também com mecanismos de controle sobre a informação que produzimos. O que quero dizer é que não devemos ser tão celebratórios quanto a essas possibilidades abertas pelas novas tecnologias, como possibilidades de democratização do conhecimento, sem levar em consideração a própria fragilidade do regime democrático que vivemos hoje, inclusive devido aos avanços tecnológicos. Há uma série de implicações de ordem econômica e política nessas esferas que se abrem pelas possibilidades digitais. De um lado, a Ciência Aberta, justamente pela sua falta de definição mais clara e um movimento que abarca vários movimentos, como defende Sarita Albagli (2019), tem sido apropriada por grandes companhias que já vem dominado o mercado científico há algumas décadas, criando nichos lucrativos em torno de valores imperativos na contemporaneidade como transparência, responsabilização e avaliação. Não é de hoje que o capitalismo se apropria de movimentos sociais, e o movimento aberto também se tornou um segmento lucrativo, o que é chamado de Open Washing por importantes pesquisadores nacionais e internacionais como Anne Clinio (2019) e Audrey Watters (2019), entre outros. Por sua vez, a dependência de redes sociais digitais para a divulgação científica também gera alguns desafios. O fato de estarmos intermediados por redes centralizadas, por algoritmos de personalização que nos limita a consumir apenas aquilo que nos interessa, estabelecendo relações com as pessoas que se aproximam de nós ideologicamente, promove um “encolhimento” da nossa própria rede social. E sabemos o quanto essa dificuldade de diálogo para além das nossas bolhas é nocivo para a própria democracia. Vimos o resultado disso nas últimas eleições em alguns países não apenas latino-americanos. Junto a isso, vemos o crescimento do sentimento de desconfiança sobre instituições bases do regime democrático construída em torno de ideais de produção e legitimação da verdade, como vêm discutido Afonso de Albuquerque (2019). Estas instituições estão no cerne de disputas de informação, entre elas a própria universidade, cujas investigações científicas produzidas têm sido deslegitimadas por algumas instituições de poder representativo da sociedade. Então, de que democratização do conhecimento estamos falando se há disputas de força econômica que tornam a Ciência Aberta um espaço lucrativo para poucos? De que democratização do conhecimento estamos falando se há disputas sobre a informação científica mediada por tecnologias que implicam na ruptura da ordem democrática?

4) A América Latina está na vanguarda dos debates sobre Ciência Aberta. Contudo, esse pioneirismo teve muito a ver com a nossa marginalização no ecossistema global da Ciência, Tecnologia & Inovação. Quais as lições da experiência latino-americana em Ciência Aberta você destacaria?

América Latina é uma das regiões mais progressistas do mundo em termos de acesso aberto e da adoção de modelos sustentáveis para a disseminação da pesquisa. Antes mesmo de ser uma agenda para o resto do mundo, o Acesso Aberto tem sido desenvolvido na região desde a década de 1990, como Scientific Electronic Library Online (SciELO), por exemplo, entre outras instituições e fundações sem fins lucrativos que vem buscando modelos sustentáveis e que são referências para o resto do mundo.

5) Métricas e avaliações se tornaram a palavra de ordem nos governos em busca de “mais eficiência do gasto público”, além dos rankings globais de universidades e na disputa entre os cientistas por financiamento. Contudo, esses números não são neutros. Pelo contrário, refletem certos modos de compreender e valorar a produção científica. Como, então, tornar essas métricas uma ferramenta de inclusão e não de exclusão de países, instituições e pesquisadores do Sul Global? 

Há uma necessidade de métricas responsáveis para a avaliação da ciência, não apenas para os países do Sul, mas de todo nós. É necessário que essas métricas responsáveis reconheçam as particularidades de circulação do conhecimento científico de países do chamado Sul Global. Precisamos desenvolver indicadores que reflitam o papel das universidades das regiões não centrais, que vai muito além de produção científica ou tecnológica. Ou seja, é preciso desenvolver indicadores que entenda a universidade pelo seu tripé pesquisa, ensino e extensão e a sua importância para atender demandas da sociedade em geral e não apenas do setor econômico. É preciso desenvolver métricas que não se limitem em vieses anglófonos e que reconheçam o multilinguismo próprio dos países do eixo do Sul. É preciso que reconheça também a diversidade epistemológica do mundo, e que nós mesmos devemos construir os modelos e teorias sobre nossas próprias sociedades e não repetir os modelos de países centrais. Precisamos nos pautar em métricas que não reforcem as desigualdades de circulação do conhecimento, como as métricas tradicionais em que a coleta de dados científicos é realizada em bases comerciais nas quais os países do chamado Sul Global estão sub-representadas. Ou seja, é preciso que estas produções científicas sobre as métricas alternativas –, não apenas de pesquisadores do Sul – reflitam também sobre a responsabilidades que os países centrais têm no desequilíbrio sobre a legitimação e circulação do conhecimento global. Então, quando falamos de métricas alternativas do ou para o “Sul Global” não podemos repetir a agenda de precariedade de infraestrutura ou de baixa cobertura apenas. Precisamos ir além e desvelar toda uma estrutura de dominação sobre a circulação do conhecimento. É preciso evidenciar as nossas práticas, que nem de longe são precárias, de novos modelos de sustentabilidade que são alternativas aos modelos comerciais do oligopólio científico. As métricas alternativas, neste sentido, vão muito além do que mensurações de circulação em ambientes digitais. São indicadores de diversidade, de justiça social, de inclusão e participação social. Essas são as métricas alternativas que nós, pesquisadores do hemisfério Sul, devemos buscar.

Referências

ALBAGLI, S. Ciência Aberta: movimento de movimentos. In: SHINTAKU, M.; SALES, L. (org.). Ciência aberta para editores científicos. Botucatu: ABEC, 2019. p. 15-19.

CLINIO, A. Ciência Aberta na América Latina: duas perspectivas em disputa. Transinformação [online]. 2019, vol.31 ISSN 0103-3786 [viewed 5 December 2019].  DOI: 10.1590/238180889201931e190028. Available from: http://ref.scielo.org/6bv9ns

DE ALBUQUERQUE, A. Protecting democracy or conspiring against it? Media and politics in Latin America: A glimpse from Brazil. Journalism, v. 20, n. 7, p. 906-923, 2019.

HONNETH, A. Freedom’s right. Cambridge: Polity, 2014.

WATTERS, A. Openwashing. 2019. Available from:  https://openwashing.org/

Link externo

Transinformação – TINF: www.scielo.br/tinf

Sobre Leonardo Cazes

Leonardo Cazes

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Leonardo Cazes é Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). É editor-assistente do Núcleo Digital da Redação Integrada da Editora Globo (O Globo, Extra e Época), responsável pelas áreas de Checagem de Fatos, Jornalismo de Dados e Radar. Editor da Newsletter Ciência no Brasil. E-mail: leocazes@gmail.com

Thaiane Oliveira

Thaiane Oliveira

Thaiane Oliveira

Thaiane Oliveira é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF), coordenadora do Laboratório de Investigação em Ciência, Inovação, Tecnologia e Educação (Cite-Lab/UFF) e do Fórum de Editores e Comunicação Científica (Foco/UFF), ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação da universidade (Proppi/UFF). É também organizadora da conferência anual LATmetrics: métricas alternativas e Ciência Aberta na América Latina. E-mail: thaianeoliveira@id.uff.br

 

 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

CAZES, L. Os riscos e desafios para a Ciência Aberta e as métricas alternativas na América Latina [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/12/06/os-riscos-e-desafios-para-a-ciencia-aberta-e-as-metricas-alternativas-na-america-latina/

 

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