Luiz Prado, do Jornal da USP, Repórter, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Estudos Avançados (vol. 34, no. 99), publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, olha para o presente com a objetividade científica e encara a crise da COVID-19 em sua diversidade de frente. Pesquisadores da USP e de outras instituições brasileiras discutem os impactos sociais da pandemia, o papel do governo na crise e as possibilidades das redes sociais no combate à COVID-19.
“O que o coronavírus deixou em evidência é que a saúde, como a educação, não pode ser pensada em termos neoliberais de investimento e capital, que a saúde não é um bem de mercado que deve ser adquirido na medicina privada, deixando a saúde pública para aqueles que não podem pagar (p. 299)”, afirma a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sandra Caponi. No artigo “Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal”, Sandra defende a necessidade da ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia e o complemento do auxílio emergencial para as famílias que vivem na informalidade ou têm crianças impedidas de frequentar creches e escolas. Salienta a necessidade de investimento em estratégias sociais para atender o trabalhador, empresário, estudante e pesquisador. Os recursos, viriam de uma reformulação no sistema de impostos visando às grandes riquezas. “Quando essa lógica neoliberal se defronta com um fenômeno dramático como a pandemia de COVID, ficam em evidência as fragilidades do modelo de saúde regulado pelo mercado” (p. 218), complementa.
As ações do governo federal brasileiro, entretanto, seguem na contramão das recomendações de Sandra, pois para Henriques e Vasconcelos (2020), “o governo não lançou nenhum plano para reorientar a economia de forma a estimular os setores de serviços e produtos necessários, o que também poderia ter sido um fator para a geração de empregos num momento de desaceleração drástica da atividade econômica” (p. 33). “Não houve plano do governo federal para reorientar a economia de forma a estimular os setores de serviços e produtos necessários, o que também poderia ter sido um fator para a geração de empregos num momento de desaceleração drástica da atividade econômica” (p. 33), atestam os autores. Para eles, a timidez das ações sociais do governo, fruto de uma postura que minimizou o problema, impactou diretamente na adesão ao confinamento. “Uma parcela enorme da população não tem fonte regular de rendimento que permita ficar em casa, como é a recomendação feita em todos os países que enfrentam a epidemia (p. 33).”
De acordo com Glauco Arbix (2020), professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a crise desencadeada pela COVID-19 arrastou, só até maio, 60 milhões de pessoas para a pobreza ao redor do planeta, em virtude da perda de renda, do emprego, redução na jornada de trabalho e cortes salariais. No Brasil, mais de 70 milhões de pessoas passaram a vivenciar alguma vulnerabilidade. “Um dos maiores desafios que o Brasil terá de superar reside na atuação de um governo disfuncional, que tenta operar por meio de uma equipe econômica ultraliberal no comando de políticas que terão, obrigatoriamente, de se valer do suporte do estado, tido e havido como o vilão a ser reduzido à insignificância (p. 68)”. Somam-se a esse desafio as desigualdades de raça e gênero, explica o professor. “No Brasil, pesquisadores identificaram diferenças na condição de vulnerabilidade entre homens e mulheres, assim como entre negros e brancos” (p. 66).
A situação da população negra diante da pandemia é o tema do artigo escrito pelos integrantes do grupo de trabalho “Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)”. Segundo a equipe, a COVID-19 encontrou uma sociedade estruturada pelo racismo, penalizando os grupos vulneráveis, sobretudo entre pessoas negras. “O perfil do brasileiro acometido pela COVID-19, nessa primeira onda, tem suas particularidades se comparado a outros países com grandes populações: está concentrado nos grandes centros urbanos, é mais jovem, tem pele mais escura e possui diversas comorbidades” (SANTOS et al., 2020, p. 232). A recomendação para enfrentar esse problema é o fortalecimento do SUS, grande responsável pelo atendimento dos grupos vulneráveis. O aporte de recursos e a contratação de profissionais para atuar na Atenção Primária à Saúde são algumas das necessidades identificadas. A precisão nos dados sobre infectados e mortos é outro ponto que o grupo destaca para evidenciar e registrar as desigualdades. “A vigilância dos casos e óbitos por COVID-19 deve ser pautada por dados fidedignos sobre as características dos indivíduos, especialmente o quesito raça/cor que tem sido sistematicamente negligenciado em alguns formulários e sistemas de informação em saúde” (p. 230).
A utilização das novas tecnologias de comunicação para enfrentar a pandemia também é tema do dossiê, como atesta o estudo de Xavier et al. (2020). No texto, uma equipe de pesquisadores da Escola Politécnica (Poli) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP apresenta os resultados de um experimento feito com o Twitter durante a pandemia. Durante 62 dias, o grupo coletou mais de 7,7 milhões de mensagens relativas à COVID-19 e realizou experimentos para demonstrar o uso da análise de dados de redes sociais na vigilância em saúde. “A busca por sintomas nas postagens”, sugere o texto, “pode revelar tendências, especialmente se forem consideradas escalas temporal e espacial. O monitoramento constante das postagens por sintomas pode revelar, por exemplo, o surgimento de casos de uma doença em um local antes de se transformar em epidemia, o que permitiria às equipes de saúde tomar as devidas ações com antecedência adequada” (p. 271).
Por fim, Palhares et al. (2020), discutem os aspectos jurídicos para o uso de dados pessoais dos cidadãos pelo governo durante a pandemia. Partindo do exemplo de países como Coreia do Sul, Nova Zelândia e Singapura, que lançaram mão do monitoramento da locomoção das pessoas através dos celulares, os autores – um time que integra pesquisadores da USP, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie – propõem um modelo batizado como Escada de monitoramento e rastreio. Segundo o grupo, cada degrau da escada teria um nível de monitoramento distinto, realizado através de aplicativos de posicionamento global (GPS) e antenas celulares. Quanto mais alto, maior seria a precisão dos dados e, ao mesmo tempo, a suspensão da privacidade dos cidadãos. “Trazendo para o plano prático, caso a gravidade e a aceleração da contaminação aumentassem em determinado sítio, os gestores públicos, amparados por legislação adequada, poderiam, com base na Escada, solicitar a utilização de medidas excepcionais de coleta de dados individualizados, anonimizados ou não (a depender da situação), de maneira ágil e cirúrgica” (p. 184). Para os autores, essa suspensão do direito à privacidade poderia ser posta em prática para garantir outros direitos fundamentais. “O direito à privacidade não se reveste de caráter absoluto. Por atuação legislativa, caberia em tese restrição indireta para conformação ou concretização de outro direito de relevo constitucional, como é o caso do direito à saúde e à vida” (p. 178). Essas restrições, indica o texto, precisariam ser adequadas, proporcionais e necessárias, respeitando o direito. “A legislação da Coreia do Sul mostrou-se paradigmática, ao evidenciar que o poder de controle de dados pessoais não implica perdas no regime democrático desde que haja consentimento e aprovação da população, bem como, e talvez sobretudo, transparência constante das autoridades políticas em relação à coleta, uso e transferência desses dados” (p. 186), defendem os autores.
Referências
ARBIX, G. Ciência e Tecnologia em um mundo de ponta-cabeça. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 65-76. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.005. Available from: http://ref.scielo.org/sy2w8j
HENRIQUES, C. M. P. and VASCONCELOS, W. Crises dentro da crise: respostas, incertezas e desencontros no combate à pandemia da Covid-19 no Brasil. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 25-44. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.003. Available from: http://ref.scielo.org/q5w486
PALHARES, G. C., et al. A privacidade em tempos de pandemia e a escada de monitoramento e rastreio. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 175-190. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.011. Available from: http://ref.scielo.org/v6dwdf
SANTOS, M. P. A. dos et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 225-244. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.014. Available from: http://ref.scielo.org/cvjy3n
XAVIER, F., et al. Análise de redes sociais como estratégia de apoio à vigilância em saúde durante a Covid-19. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 261-282. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.016. Available from: http://ref.scielo.org/986wqm
Para ler o artigo, acesse
CAPONI, S. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estud. av. [online]. 2020, vol. 34, no. 99, pp. 209-224. ISSN: 1806-9592 [viewed 28 July 2020]. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.013. Available from: http://ref.scielo.org/grb7vk
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