Licínio C. Lima, Professor catedrático do Instituto de Educação e investigador do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho, Braga, Portugal.
A educação digital que atualmente se manifesta por meio de múltiplas formas, exige a digitalização das respetivas organizações educativas e da sua administração (WILLIAMSON, 2016). É nesse contexto que a referência às máquinas de administrar a educação se justifica, estando longe de ser apenas uma metáfora. Já hoje, em escolas e universidades, somos sujeitos e objetos de ações administrativas eletrônicas, de decisões algorítmicas, de cibervigilância. Todas as áreas da educação e de sua organização e administração têm-se revelado passíveis de processos de modernização e de racionalização baseados nas tecnologias de informação e comunicação, designadamente por meio de plataformas digitais que prometem elevada rapidez e eficiência, pondo termo à burocracia. A inteligência artificial, entre outros recursos, permitirá revolucionar a administração educacional, a tomada de decisões racionais baseadas em cálculos complexos, a fiabilidade, o armazenamento e a gestão integrada de grandes massas de dados. Mas essas mudanças, já em curso, garantirão a desburocratização das organizações educativas e da sua administração? E serão compatíveis com a gestão democrática da educação (MEIRA, 2019)? O ensaio “Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada”, publicado no periódico Educação & Sociedade (vol. 42), discute esses e outros problemas, recorrendo aos estudos clássicos sobre dominação racional burocrática a partir de uma perspectiva crítica, admitindo que as promessas de desburocratização possam redundar numa nova e mais poderosa burocracia eletrônica, ou hiperburocracia (LIMA, 2012).
Há quatro décadas que o autor vem procurando contribuir para a construção de uma sociologia das organizações educativas, a partir do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho. Tendo dedicado especial atenção às políticas e administração da educação, incluindo pesquisas teóricas e empíricas sobre as tensões entre democratização e modernização da educação, gestão democrática e gestão burocráticas das escolas, iniciou na última década um projeto de pesquisa que estuda os impactos do novo gerencialismo na educação, nomeadamente em termos de governança, de processos de administração e de avaliação.
A informatização tem tido grande impacto na administração da educação e tem conduzido à desmaterialização dos seus processos. É, contudo, falacioso concluir que tal desmaterialização tem garantido a prometida desburocratização. Em primeiro lugar porque a dominação de tipo racional-legal se encontra institucionalizada, tendo resultado de processos de racionalização socialmente construídos na longa duração. Em segundo lugar, a desmaterialização, o uso de plataformas informáticas e de outros dispositivos digitais têm-se revelado capazes de realizar várias dimensões da burocracia que só aparelhos velozes e fidedignos poderiam realmente alcançar, visando regras universais, a uniformidade e a estandardização (SELWYN, 2011), a objetividade, o cálculo e a mensuração, a vigilância e o controle remoto sobre administradores e administrados. Finalmente, porque a racionalidade técnica e instrumental se expande sem precedentes, fazendo uso das tecnologias de informação e comunicação, de estruturas organizacionais achatadas, do planeamento centralizado, do recurso a regras escritas e digitalmente inscritas em plataformas, de modos digitais de supervisão que, em termos globais, são híbridos e aparentemente contraditórios, mas que, no entanto, não têm impedido que a investigação venha refutando a tese da rutura com a burocracia organizacional.
A burocracia não só não foi combatida, nem destronada, como foi aumentada a partir do momento em que se desmaterializou e adotou a velocidade e a certeza, produzindo decisões automatizadas e vigiando o seu efetivo cumprimento. Essa burocracia aumentada, ou hiperburocracia, representa um dos mais extraordinários processos de governo heterónomo da educação, de perda de autonomia e liberdade dos atores, embora, paradoxalmente, em nome da sua autonomia e possibilidade de escolha (GRIMALDI; BALL, 2021). Subjugada a uma racionalidade formal intensificada, tende a produzir uma educação tão mais irracional em termos substantivos quanto mais racional em termos formais. É com a burocratização aumentada da educação, possível através das máquinas de administrar a educação, que as dimensões éticas e estéticas, relacionais e emocionais, democráticas e participativas, de humanização dos seres humanos, entre outras, saem potencialmente diminuídas, eventualmente impossibilitadas.
Convido você caro leitor a assistir ao vídeo onde apresento outras discussões sobre máquinas de administrar a educação.
Referências
GRIMALDI, E. and BALL, S. J. Paradoxes of freedom. An archaeological analysis of educational online platform interfaces. Critical Studies in Education [online]. 2021, vol. 62, no. 1, pp. 114-129. e- ISSN: 1750-8495 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1080/17508487.2020.1861043. Available from: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17508487.2020.1861043
LIMA, L. C. Elementos de hiperburocratização da administração educacional. In: LUCENA, C.; SILVA JÚNIOR, J. R. (orgs.). Trabalho e educação no século XXI: experiências internacionais. São Paulo: Xamã, 2012. pp. 129-158.
MEIRA, M. A difícil relação entre burocracia eletrónica e democracia na administração educativa em Portugal. Educação & Sociedade [online]. 2019, vol. 40, e0206742. ISSN: 1678-4626 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019206742. Available from: http://ref.scielo.org/ymwg28
SELWYN, N. It’s all about standardisation. Exploring the digital (re)configuration of school management and administration. Cambridge Journal of Education [online]. 2011, vol. 41, no. 4, pp. 473-488. e-ISSN: 1469-3577 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1080/0305764X.2011.625003. Available from: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0305764X.2011.625003
WILLIAMSON, B. Digital education governance: data visualization, predictive analytics, and ‘real-time’ policy instruments. Journal of Education Policy [online]. 2016, vol. 31, no. 2, pp. 123-141. e-ISSN: 1464-5106 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1080/02680939.2015.1035758. Available from: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/02680939.2015.1035758
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LIMA, L. C. Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada. Educação & Sociedade [online]. 2021, vol. 42, e249276. ISSN: 1678-4626 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/ES.249276. Available from: http://ref.scielo.org/sc8f7s
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