“A África tem uma história”: a Coleção História Geral da África (UNESCO) oferece bases teórico-metodológicas para a descolonização do ensino

Marcelo Felício Martins, mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), professor da educação básica na rede estadual de Minas Gerais. Ponte Nova, Minas Gerais, Brasil. 

Juliana Cesário Hamdan, professora de História e Filosofia da Educação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Departamento de Educação. Pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição. Nova Lima, Minas Gerais, Brasil.

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Análises do primeiro volume da Coleção História Geral da África (2010), financiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), das Sínteses da referida Coleção (2013) e do manual História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na Educação Infantil (2014) – publicadas no artigo A Coleção ‘História Geral da África e a Historiografia da Educação: Por um Ensino Descolonizado, na Revista Brasileira de História e Educação, vol. 23 (2023) – buscam compreender os possíveis alcances dessas obras na construção de teorias e metodologias de ensino antirracistas, ou seja, na descolonização do ensino, à luz da Lei 10.639/2003.

A efetiva implementação de políticas públicas educacionais que visam à construção de uma educação antirracista, tendo como fundamento a Lei 10.639, sancionada em 2003, ainda representa um desafio. A tradução para a língua portuguesa da Coleção História Geral da África (HGA) (2010), a publicação das Sínteses da Coleção (2013) e do manual História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (2014), a partir do “Programa Brasil-África: Histórias Cruzadas”, são iniciativas importantes, uma vez que fornecem amplo arcabouço teórico-metodológico para a pesquisa e para o ensino sobre essa temática na educação básica. 

O referido programa foi uma iniciativa da Representação da UNESCO no Brasil, da Secretaria de Educação Continuada (Secad/ MEC) e de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) dessa instituição.

A HGA foi um projeto desenvolvido e financiado pela UNESCO, entre 1965 e 1999, com o objetivo de construir e sistematizar discussões históricas sobre o continente africano a partir, sobretudo, de uma perspectiva autóctone, desconstruindo visões eurocêntricas e racistas forjadas há séculos acerca da África. 

Teve como resultado a publicação de oito extensos volumes, que abordam temas diversos contidos em um recorte cronológico que vai desde a “Pré-História” até o final do século XX, e cujos capítulos contaram com as contribuições de trezentos e cinquenta especialistas. 

A obra se divide da seguinte forma: Metodologia e pré-história da África (volume 1), África Antiga (volume 2), África do século VII ao XI (volume 3), África do século XII ao XVI (volume 4), África do século XVI ao XVIII (volume 5), África do século XIX à década de 1880 (volume 6), África sob a dominação colonial, 1880-1935 (volume 7), África desde 1935 (volume 8).

Segundo Muryatan Barbosa Santana (2012), que em sua tese de doutorado se debruçou sobre o assunto, três categorias analíticas fundamentaram as pesquisas e a escrita da Coleção: o sujeito africano, o regionalismo e o difusionismo intra-africano. Essas concepções teórico-metodológicas, reunidas sob a categoria perspectiva africana vão ao encontro da descolonização do conhecimento histórico construído sobre a África, principalmente a partir da ótica de intelectuais africanos, tais como Jospeh Ki-Zerbo, Amadou Hampaté Bâ, Betwell Allan Ogot; e oriundos de diversas áreas do conhecimento, como a História, a Antropologia, a Geografia. 

Foto da Coleção História Geral da África.

Imagem: foto registrada pelo autor (2023).

Nesse sentido, os pesquisadores buscaram analisar a dinâmica histórica da África enfatizando o protagonismo dos indivíduos e das sociedades africanas, as interações socioculturais e econômicas existentes há séculos no continente e “[…] os elementos fundamentais que explicariam a história de uma região africana, em particular”, numa ótica da longa duração. (Barbosa, 2012, p. 131). 

A partir da versão brasileira da Coleção História Geral da África por meio do “Programa Brasil-África: Histórias Cruzadas” desenvolvido pelo Neab/UFSCar, em parceria com a UNESCO e com o MEC, houve a elaboração da Síntese da Coleção História Geral da África, publicada em dois volumes no ano de 2013, editada por Valter Roberto Silvério (2013), professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. 

Nesses livros, condensou-se o conteúdo dos originais da HGA em cerca de 90%, de forma que “[…] cada volume da versão original em língua portuguesa transformou-se em um capítulo na versão sintetizada […]”, ao mesmo tempo que, no segundo tomo, “[…] os capítulos de cada um dos volumes da versão original transformaram-se em subcapítulos ou tópicos”. (Silvério, 2013, p. 10).

Outro importante produto oriundo dos trabalhos desenvolvidos na HGA e no “Programa Brasil-África”: Histórias Cruzadas foi a História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Infantil, manual direcionado aos professores da educação infantil. Seu intuito, segundo o Ministério da Educação, a Representação da Unesco no Brasil e os especialistas envolvidos da Universidade Federal de São Carlos, é propiciar “[…] a construção de uma educação infantil que contemple a identidade étnico-racial e a diversidade cultural das crianças que frequentam os espaços infantis […]”, bem como abrir “[…] caminhos para aqueles que buscam respostas de como fazer, no cotidiano, para construir uma sociedade livre da discriminação e do preconceito racial” (Brasil, 2014, p. 9). 

Por meio de propostas pedagógicas antirracistas, o livro fomenta o desenvolvimento de projetos educativos com o objetivo de valorizar a diversidade cultural africana e afro-brasileira.

Tendo em vista que a marginalização dos alunos negros no sistema educacional brasileiro se deve, em grande parte, à falta de identificação destes com os conteúdos discutidos em sala de aula, compreendemos que a produção e a divulgação de conhecimentos científicos sobre a África, sob a visão africana, torna compreensíveis a complexidade e a importância históricas do continente, bem como as contribuições das sociedades africanas e dos afro-brasileiros para a formação da sociedade brasileira, a educadores e educandos. 

Dessa forma, constatamos que a tradução da Coleção História Geral da África (2010), a publicação das Sínteses da Coleção (2013) e do manual História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (2014) colaboram para o que Nilma Lino Gomes (2012) denominou de descolonização dos currículos, ou seja, o rompimento com paradigmas epistemológicos eurocêntricos e racistas produzidos e reproduzidos na educação.

Referências

BARBOSA, M.S. A África por ela mesma: a perspectiva africana na história geral da África [online]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. 2021 [viewed 03 August 2023]. Available from: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09012013-165600/pt-br.php

BRASIL. História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil [online]. Brasília, DF: MEC/SECADI, 2014 [viewed 03 August 2023] Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000227009

GOMES, N.L. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras. 2012, vol. 12, no 1, pp. 98-109 [viewed 03 August 2023]. Available from: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wpcontent/uploads/2012/11/curr%C3%ADculo-e-rela%C3%A7%C3%B5es-raciais-nilmalino-gomes.pdf

KI-ZERBO, J. (Ed.). História geral da África: metodologia e pré-história da África (pp. xxxi-lvii). Brasília: Unesco, 2010 [viewed 03 August 2023]. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190249.locale=en   

SILVÉRIO, V.R. (Org.). Síntese da coleção história geral da África: pré-história ao século XVI (pp. 7-16). Brasília, DF: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013 [viewed 03 August 2023]. Available from: https://unesco.bibliomondo.com/ark:/48223/pf0000227007?posInSet=4&queryId=N- 3f2fa233-444b-4e87-a5c4-0277499c4be4 

Para ler o artigo, acesse

PINTO, M.F.M. and HAMDAN, J.C. A Coleção ‘História geral da África’ e a historiografia da educação: por um ensino descolonizado. Revista Brasileira De História Da Educação [online]. 2023, vol. 23, no. 1, e254 [viewed 03 August 2023]. DOI: https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e254. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/YvybV9MdpmjQ5GhdmStSkzx/  

Links Externos

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Marcelo Felício Martins Pinto – Lattes: http://lattes.cnpq.br/9532635006120062 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

MARTINS, M.F and PINTO, H.J.C. “A África tem uma história”: a Coleção História Geral da África (UNESCO) oferece bases teórico-metodológicas para a descolonização do ensino [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2023 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2023/08/03/a-africa-tem-uma-historia/

 

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