Daniel Costa Gomes, mestrando em Relações Internacionais na Universidade de Brasília – UnB e membro da equipe editorial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
Em 1944, os países aliados reuniram-se em Bretton Woods. Seu diagnóstico era claro: o protecionismo da década de 1930 contribuiu significativamente para o conflito que eclodiu em 1939. Por isso, a Carta de Havana, de 1947, recomendou a criação da Organização Internacional do Comércio (OIC). Os Estados Unidos, no entanto, opuseram-se a essa criação. Para sair do impasse, foi adotado um Acordo Provisório (frise-se, provisório) sobre comércio. Aproveitava-se, então, o Capítulo IV da finada OIC, relançado sob o nome de Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), do qual o Brasil é um dos signatários originais. O objetivo de reduzir os direitos aduaneiros foi concretizado: entre 1947 e 1994, a média tarifária foi reduzida de 40% para 5%. Apesar desse sucesso, o GATT 47, todavia, padecia de limitações. Assim, na Rodada do Uruguai (1986-1994), foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que contemplava o clamor pela inclusão de novos temas, como agricultura, serviços, propriedade industrial, investimento.
A inclusão de alguns desses novos temas, no entanto, foi objeto de duras negociações. O Brasil, por exemplo, era bastante reticente quanto à liberalização do comércio de serviços, como demonstra o artigo “Negociações comerciais em uma economia fechada: o Brasil e o comércio de serviços na Rodada Uruguai”, publicado no volume 58, número 1 edição da Revista Brasileira de Relações Internacionais. Raphael Cunha, autor do artigo, concedeu entrevista a Daniel Costa Gomes, mestrando em Relações Internacionais na Universidade de Brasileira e membro da equipe editorial da RBPI. O autor tem amplos interesses de pesquisa em economia política internacional e comparada, com um foco particular sobre a política da globalização financeira e de risco de crédito soberano, bem como a concepção de instituições econômicas internacionais. Seus interesses metodológicos incluem o projeto de pesquisa, a inferência causal, análise de séries temporais, e métodos para o estudo de interdependências complexas na economia política global, como a econometria espacial e análise de rede social.
1. Você acha que a postura defensiva brasileira em relação aos serviços pode ser interpretada como herança da posição soberanista do regime militar?
Eu não interpretaria dessa forma. O protecionismo comercial como estratégia de desenvolvimento não foi inventado pelo regime militar. Por exemplo, a política de substituição de importações de Vargas e o nacional desenvolvimentismo de JK privilegiavam a defesa da indústria nacional. O nacionalismo econômico em suas diversas formas perpassa a história moderna brasileira. Uma das minhas conclusões no artigo é que a postura defensiva do país em relação ao comércio de serviços veio em grande das ideias e crenças desenvolvimentistas dos decisores da época, mas eu não atribuiria isso diretamente ao regime militar.
2. Na Rodada do Uruguai, o Brasil achava que os países desenvolvidos estavam tentando “chutar a escada” para o progresso. Ou seja, estavam tentando proibir o caminho (protecionismo inicial) que todos percorreram para atingir o desenvolvimento. O que você acha desse argumento?
O artigo não entra no mérito do argumento que defende esse protecionismo inicial (a defesa da indústria nascente, como é conhecido). A pesquisa diz respeito aos determinantes da diplomacia comercial no que tange ao comércio de serviços. Para respondê-la, pode-se deixar em suspenso a questão do mérito do argumento da indústria nascente sem prejuízo para a análise. O que a documentação primária mostra é que os decisores a cargo do tema de serviços compartilhavam dessa perspectiva.
Quanto ao mérito do argumento, é uma questão complicada que se divide em várias partes. Primeiro, foi o protecionismo comercial que levou ao progresso dos países desenvolvidos? Essa é uma questão antiga na disciplina da economia, e a pergunta mais importante que os economistas tentam responder é se esses países se desenvolveram por causa do protecionismo ou apesar dele. A maioria dos economistas acredita que a evidência acumulada até hoje depõe contra a hipótese. Segundo, os países desenvolvidos tinham a intenção de chutar a escada, isto é, impedir o desenvolvimento dos países mais pobres? A pergunta mais importante, ao meu ver, é: por que o fariam? Não conheço evidência da existência dessa intenção perversa.
3. Você aponta que, na Rodada do Uruguai, o Brasil foi bem menos liberalizante que a Argentina. É possível afirmar que, depois, os dois países inverteram as posições, com Brasil se abrindo, e Argentina se fechando?
É importante fazer a distinção entre a adoção de compromissos multilaterais em serviços e a liberalização do comércio de fato. A maioria dos compromissos firmados pelos países na Rodada Uruguai não resultaram em aumento da abertura da economia na prática, mas na consolidação do nível de abertura já existente. Os países se comprometeram a não piorar as condições de acesso aos seus mercados no futuro. Em outras palavras, os compromissos estabeleceram um teto em termos de proteção do mercado que não poderia ser ultrapassado. O Brasil foi excessivamente cauteloso no estabelecimento desse teto quando comparado com outros países semelhantes. Os decisores brasileiros quiseram manter a maior margem de manobra possível para poderem adotar novas proteções ou regulamentações no futuro. É nesse sentido que o Brasil foi especialmente defensivo. A Argentina, por sua vez, foi menos conservadora e adotou compromissos muito mais próximos do grau de abertura que já exercia à época.
Os dois países não inverteram posições depois da Rodada Uruguai. O Brasil continua bastante defensivo nas negociações de serviços. É o que mostro no restante da pesquisa da minha dissertação de mestrado, que cobre também parte da Rodada Doha. Apesar de o país ter passado por um processo de abertura em diversos setores — por exemplo, abriu o mercado de resseguros, reduziu restrições à participação de capital estrangeiro em hospitais — a diplomacia brasileira continua defensiva quando negociamos na OMC. Então, não creio que houve uma inversão de posições.
4. Posteriormente, houve liberalização em vários segmentos do setor de serviços no Brasil. Para você, a que se deveu essa mudança de posição?
Novamente, do ponto de vista da diplomacia comercial, a posição não mudou tanto. O país abriu diferentes setores de serviços em diversos graus, e alguns setores são hoje competitivos. No entanto, em negociações internacionais, o país ainda trata a agricultura como interesse ofensivo e serviços como interesse defensivo. Dadas às mudanças na economia de serviços brasileira nas últimas décadas, acho que a pergunta mais interessante é: por que a posição não mudou (ou não mudou mais)? Essa é uma pergunta que eu gostaria de poder responder, mas as boas fontes documentais ainda não estão disponíveis, pois são muito recentes.
Mini currículo do autor:
Raphael Cunha é doutorando em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Ohio State University – OSU, Estados Unidos, onde estudaeconomia política internacional e metodologia política. Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Brasília, Brasil, é também mestre em Ciência Política pela OSU. Cunha foi pesquisador sênior do Programa de Estatística e Metodologia (PRISM) no Departamento de Ciência Política da OSU em 2013-2014 e desde 2015 é Adam Smith Fellow no Adam Smith Fellow at George Mason University’s Mercatus Center da George Mason University. E-mail: cunha.6@osu.edu
Para ler o artigo, acesse:
CUNHA, R. C. Negociações comerciais em uma economia fechada: o Brasil e o comércio de serviços na Rodada Uruguai. Rev. bras. polít. int. [online]. 2015, vol.58, n.1, pp. 142-163. [viewed 16th November 2015]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201500108. Available from: http://ref.scielo.org/3vz5hm
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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