Marina Lemle, jornalista, Blog de HCS-Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
No artigo “Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888”, Victor Andrade de Melo e Fabio de Faria Peres, do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, analisam como os periódicos da época e o romance “O Ateneu”, de Raul Pompéia, retratam a ginástica no Rio nas últimas décadas do Império. Victor Andrade de Melo é professor da UFRJ, atuando na pós-graduação em História Comparada do Instituto de História e na graduação e pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação. Fabio de Faria Peres faz pós-doutorado no programa de pós-graduação em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais. Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, os pesquisadores discutem aqueles tempos e também os dias de hoje, quando a Educação Física deixa de ser obrigatória nas escolas.
1. No Brasil, no século XIX, a prática da ginástica era tida como importante ferramenta para o desenvolvimento físico, moral e intelectual das crianças e jovens. No prestigioso Colégio Abílio, no Rio de Janeiro, o plano de estudos de 1871 já previa aulas de ginástica e natação no primário e no secundário. Nas festividades da escola, a ginástica era um espetáculo garantido, que ganhava até destaque na imprensa. Que gama de significados e interesses esse papel da ginástica trazia consigo naquele contexto histórico?
No século XIX, os sentidos e significados atribuídos à ginástica eram mais plurais e multirreferenciados do que comumente tendemos a imaginar. Os estudos, de modo geral, parecem partir de um anacronismo essencial que sobrevalorizam o papel de algumas instituições sociais, como por exemplo a medicina, a escola e as instituições militares. Essas pesquisas tendem a pensar que tais instituições — em termos de poder, status e legitimidade — eram iguais ao que elas viriam a se tornar posteriormente no final século XIX e começo do XX. É como se elas fossem representadas a-historicamente.
Sem dúvida, os saberes médicos, pedagógicos e relativos à defesa foram fundamentais na construção e mesmo consolidação de discursos que associavam diversas práticas corporais aos domínios moral, intelectual e físico. No entanto, essas instituições tiveram que “lutar” para legitimar suas práticas e representações. Tratou-se de um processo gradual e heterogêneo. Até mesmo porque elas não apenas não eram uniformes internamente, como as suas relações, por exemplo, com o Estado, não eram lineares e nem mesmo se davam em um único sentido.
No caso específico da ginástica, o que tentamos argumentar é que devido a esse contexto houve maior diálogo entre essas instituições e outras menos “visíveis” para os pesquisadores. Esse é caso, por exemplo, do circo. Embora discursivamente as instituições médicas, militares e pedagógicas procurassem se afastar e, mais do que isso, condenar a experiência circense, na prática elas se assemelhavam. Na verdade, durante quase todo século XIX essas instituições buscaram imitar, em muitos sentidos, a ginástica praticada nos circos.
Foi essa ginástica (antes das “outras”), aliás, que talvez tenha primeiro gestado uma nova sensibilidade corporal para a sociedade fluminense.
2. O Ateneu, de Raul Pompéia, foi publicado pela primeira vez em 1888, em folhetins da Gazeta de Notícias. O romance narra as memórias do protagonista Sérgio como estudante de um dos mais importantes colégios do Império, que teriam paralelos com a vivência do autor como estudante do Colégio Abílio. Que contradições sobre a sociedade fluminense o livro levanta, mesmo sendo uma obra de ficção?
Uma das premissas, se não a principal, de O Ateneu é lançada logo na primeira frase da obra: “vais encontrar o mundo”, disse o pai de Sérgio logo na entrada do colégio.
Há, portanto, no olhar de Pompéia uma certa continuidade entre a instituição escolar e a sociedade. Mais do que isso, o autor reforça a ideia, talvez pessimista ou realista, dependendo do ponto de vista, de que não é a escola “que faz a sociedade”, ela a reproduz, refletindo a sociedade em todos os seus aspectos, suas contradições, violências e ambiguidades. E isso não se dá apenas no plano das ideias, mas se materializa nos corpos.
Trata-se, então, não de uma sociedade genérica, mas de uma sociedade específica.
Não é por acaso que a recomendação principal do pai de Sérgio seja “coragem e luta”.
Uma leitura possível do romance é justamente sobre a tomada de consciência de uma incompatibilidade ou de uma não adequação entre práticas, discursos e estrutura social em uma sociedade que se dizia civilizada.
Não é mera coincidência que o romance termine com um dos alunos colocando fogo no internato.
3. No recente projeto de reformulação do ensino médio lançado pelo Governo Federal, a Educação Física deixa de ser obrigatória. O que isso significa historicamente e que consequências pode ter?
Além da unilateralidade da medida provisória — o que por si só evidencia um governo contrário e mesmo hostil ao diálogo e à participação social —, a intenção de excluir determinadas disciplinas revela uma visão de que tais disciplinas não teriam valor pedagógico, consideradas a-pedagógicas, ou que teriam valor menor. Ainda que o governo já tenha sinalizado uma revisão da medida, isso não muda a visão de escola e o papel que ela deveria desempenhar na perspectiva desse governo. Do ponto de vista histórico, trata-se de um retrocesso.
Ao limitar o acesso a essas disciplinas, como a Educação Física, a medida institucionalizaria e ao mesmo tempo reforçaria a divisão e as desigualdades sociais.
Apenas os privilegiados teriam a “oportunidade” — diga-se de passagem oportunidade produzida por toda a sociedade — de ter acesso a elas dentro e fora das escolas. Algo que já ocorre em graus variados, seja pela desvalorização dos professores, seja pelas condições concretas em que essas disciplinas são ensinadas, salvo algumas exceções, no ensino público.
A diferença é que essa medida reproduz, legítima e naturaliza as distâncias entre classes, ao negar a possibilidade de acesso a um maior capital cultural.
A “flexibilização” proposta, na verdade, vai nessa direção, uma vez que nem todas as escolas, de acordo com o próprio governo, terão condições de oferecer todas as possibilidades de formação. Não se trata de ser contra a ideia de flexibilização, mas de como ela está sendo desenhada pelo governo. Em outras palavras, para alguns um horizonte vasto; para outros, uma única direção, um único destino. Isso diz muito sobre o tipo de governo e a escola que ele quer formar.
Para ler os artigos, acesse
MELO, V. A. and PERES, F. F. Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. In press. [viewed 20th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702016005000020. Available from: http://ref.scielo.org/xfrpfb
MELO, V. A., PERES, F. F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1131-1149, dez. 2014. . [viewed 20th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702014000400004.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702014000401131&lng=pt&nrm=iso>. Acesso: em 09 out. 2016. http://dx.doi.org/
MELO, V. A. Atividades físicas, saúde e movimentos juvenis em Cabo Verde, 1910-1930. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 843-860. [viewed 20th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702012000300004 Available from: http://ref.scielo.org/c7npmj
SILVA, C. L. B., MELO, V. A. Fabricando o soldado, forjando o cidadão: o doutor Eduardo Augusto Pereira de Abreu, a Guerra do Paraguai e a educação física no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 337-354. [viewed 20th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702011000200005. Available from: http://ref.scielo.org/9s6wks
MELO, V. A., PERES, F. F. Sport, medicina e arte: a ‘ciência encantada’ do corpo nas obras de Thomas Eakins. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 33-50. [viewed 20th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702010000100003. Available from: http://ref.scielo.org/gkxyy8
Link externo
História, Ciências, Saúde – Manguinhos – HCSM: www.scielo/hcsm
Sobre Marina Lemle
Marina Lemle é jornalista e mestranda em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Tem experiência como editora, repórter e redatora nas áreas de saúde, meio ambiente, segurança pública, segurança no trânsito, ciências sociais e humanas e tecnologia e inovação. Trabalha com jornalismo, gestão de conteúdo online e redes sociais. e-mail: marinalemle@gmail.com
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