Mãe é tudo igual? Mapeamento Corporal Narrado por Gabriela

Sofia Martins, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO-UFSCar), São Carlos, SP, Brasil.

Lilian Magalhães, Professora do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO-UFSCar), São Carlos, SP, Brasil.

O artigo “Vai arrumar este cabelo, neguinha! Mapeamento Corporal Narrado por Gabriela, mãe negra” publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação (Martins; Magalhães, 2021), é resultado das reflexões sobre como o racismo, em seus diferentes níveis – internalizado, interpessoal e institucional, impacta a vida de mulheres mães negras. Neste texto, uma participante autodeclarada de cor/raça preta reflete sobre a constituição de sua identidade racial negra e os efeitos desse processo na prática de cuidar de seus filhos negros, enfatizando as experiências cotidianas de prepará-los para a vida na sociedade brasileira contemporânea.

O estudo é parte dos resultados da pesquisa de doutorado de Sofia Martins, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO-UFSCar), sob a orientação da professora Dra. Lilian Magalhães. A motivação da pesquisa foi abordar a experiência de ser mulher negra no cotidiano – tema que compõe as especificidades da população negra. A pesquisa foi realizada em Uberaba-MG, entre os meses de agosto/2019 e fevereiro/2020 e descreve o caso de uma das participantes. Os resultados configuram-se como inovadores, pois situam o racismo como categoria essencial de análise, possibilitando visualizar o impacto do racismo na subjetividade das mulheres negras e na experiência de criação de seus filhos negros. Permite ainda identificar um conjunto de estratégias de enfrentamento, utilizadas para romper com a inferiorização do negro, adotadas pelas mulheres mães negras.

A metodologia, de abordagem qualitativa, visual e criativa denominada Mapeamento Corporal Narrado (MCN) (Gastaldo; Magalhães; Carrasco; Davy, 2012) narra a experiência de uma mulher mãe negra, de Minas Gerais.  Gabriela, 31 anos, heterossexual, profissional da área de comunicação, casada, dois filhos. Durante três encontros com a pesquisadora, a participante detalha desde o modo pelo qual se percebe como negra, até valores e atitudes que adota, pensando na criação e no futuro de seus filhos.

Mapa corporal narrado da participante Gabriela, confeccionado em Uberaba-MG, 2019. Imagem: Acervo do projeto de pesquisa.

Gabriela declarou que seu mapa é seu autorretrato. Por meio de desenhos e colagens, Gabriela afirma que o processo de “tornar-se negra” se desenvolveu a partir da socialização em situações nas quais o seu fenótipo negro era comparado e inferiorizado por colegas, meninos e meninas, no ambiente escolar, a partir de um modelo articulado por padrões da branquitude. Gabriela revelou não saber se existe um day one para se definir como mulher negra, pois há vários fatores que se articulam para constituir o processo. Gabriela identificou sentimentos de insegurança e posturas de servidão assumidas por ela, decorrentes das experiências desagradáveis no contexto de trabalho.

No processo de maternagem, Gabriela narrou que o amor pelos filhos é um sentimento paulatinamente construído, assim como as responsabilidades inerentes ao papel de mãe. O depoimento de Gabriela demonstra visual e narrativamente preocupações com os comportamentos, etiquetas sociais e a formação do caráter dos filhos. Gabriela também se preocupa em superar uma cultura familiar em que há depreciações sobre a condição dos negros, repassadas intergeracionalmente. Assim, ser mãe negra faz Gabriela buscar livros e valores que a auxiliem na construção positiva da identidade, bem como da representatividade negra.

A narrativa de Gabriela, construída através do MCN, revela um corajoso processo de reflexão, que contribui para um diálogo público arrojado. Gabriela diz que a confecção do mapa corporal mostrou o autorretrato de sua história de vida, desde a infância até os dias atuais, resgatando eventos que influenciaram na sua própria percepção de si, como a sensação de desconforto com seu fenótipo e os sentimentos decorrentes de processos de rejeição, exclusão e inferiorização urdidos nas relações configuradas pela lógica do racismo institucional.

Registro da sessão de mapeamento corporal da participante Gabriela, terceiro encontro, 2019. Imagem: Acervo do projeto de pesquisa.

O uso do racismo como categoria de análise viabilizou o entendimento de processos complexos de subjetivação experimentados ao longo da vida desta mãe negra, o que tornou possível a identificação de desafios, mas também da engenhosidade das estratégias aplicadas no exercício cotidiano de educar crianças negras em um país com trocas sociais racistas como o Brasil.

A maternidade é um fenômeno complexo, socialmente construído, com múltiplos significados e contradições. O trabalho materno é fundamentado nas realidades sociopolíticas, constituindo-se em uma prática de desenvolvimento pessoal, politização e reestruturação da ordem social da mãe. Os estudos sobre a maternidade englobam diversos temas, abordagens e disciplinas. No entanto, trabalhos sobre a maternidade vinculada a questões raciais são escassos.

A consciência da maternidade configurada em um contexto histórico específico composto por estruturas de gênero, raça e classe pode auxiliar na construção de políticas públicas e estratégias que priorizem a proteção de crianças, adolescentes e jovens negros, bem como atenção e apoio às mulheres mães negras. Nesse contexto, compreendemos que a maternidade de mulheres negras se diferencia das mães não negras porque existe uma experiência particular de preparar os filhos para a vida na complexa sociedade contemporânea e da elaboração de um conjunto de estratégias de enfrentamento que buscam combater o impacto do imaginário social que inferioriza o povo negro.

Nesse sentido, agradecemos à Interface e ao Blog SciELO em Perspectiva pela oportunidade de destacar os resultados da pesquisa, reiterando a necessidade urgente de tornar pública a aviltante realidade cotidiana de pessoas como Gabriela. No vídeo a seguir, a professora Lilian Magalhães contextualiza a discussão sobre o tema.

Referências

GASTALDO, D., et al. Body-Map Storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping. Toronto: Creative Commons, 2012.

Para ler o artigo, acesse

MARTINS, S., MAGALHÃES, L. Vai arrumar este cabelo, neguinha! Mapeamento Corporal Narrado por Gabriela, mãe negra. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2021, vol.25 [viewed 13 September 2021]. https://doi.org/10.1590/interface.200824. Avalable from: http://ref.scielo.org/zpy28b

Links externos

Interface – Comunicação, Saúde, Educação – ICSE: www.scielo.br/icse

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

MARTINS, S. and MAGALHÃES, L. Mãe é tudo igual? Mapeamento Corporal Narrado por Gabriela [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2021 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2021/09/14/mae-e-tudo-igual-mapeamento-corporal-narrado-por-gabriela/

 

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