Justiça e educação: como pensar uma escola justa?

Alice Botler, Professora titular da Faculdade de Educação da UFPE, Recife, PE, Brasil. 

Flávia Schilling, Professora Associada da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, SP, Brasil. 

Justiça e Educação em suas múltiplas abordagens

O coletivo de artigos agrupados na seção temática Justiça e Educação: um debate necessário, relacionam justiça e educação, mobilizando análises relativas aos avanços no direito à educação, aos limites e potencialidades das políticas educacionais e às dinâmicas vivenciadas no micro campo escolar. Tais políticas repercutem em termos de práticas escolares e princípios de justiça que afloram no chão das escolas, locus em que ganha relevo todo tipo de interação.

A justiça plural, as práticas escolares e as relações de poder são examinadas por Botler (2018) em Injustiças vividas e demandas por reconhecimento numa escola pública: expressões de estudantes de ensino médio (2021) ao captar as concepções que os sujeitos escolares apresentam a respeito de justiça, o que frequentemente se materializa sob forma de violências e indisciplinas na organização escolar. A autora conclui que a escola não tem efetivado o debate necessário sobre os problemas decorrentes da ausência da justiça, a exemplo da demanda estudantil por reconhecimento de suas identidades religiosas.

Resende, Gouveia, Beirante e Freitas de Souza se baseiam na sociologia pragmática para discutir a justiça escolar, que remete à valoração e reconhecimento, em Compor o reconhecimento: explorar laços com os outros na escola (2021). Os autores evidenciam que os alunos estrangeiros exteriorizam a problemática do reconhecimento nas diversas experiências em que esse reconhecimento é ou não experienciado.

Liberdade é conquista social? Freire e Vigotski na perspectiva da educação em direitos humanos, de Moreira e Pulino, sugere a criação de modelos sociais mais justos e solidários, que considerem a afetividade e a responsabilidade como aspectos fundantes da própria liberdade.

Já Pinto (2021), em Injustiças e astúcias associativas nas ocupações das escolas públicas do Rio de Janeiro em 2016, analisa as ocupações das escolas públicas e recomenda a oferta de uma escola pública habitável que supere a difícil batalha pela escolarização e pela autonomização nas condições complexas, desiguais e plurais da sociedade brasileira atual.

São abordadas, de modo geral, as diversas formas como a educação, como um bem social, tem sido chamada a responder pelos anseios de justiça social, ao mesmo tempo em que reconstrói cotidianamente seus princípios.

Assim, quando o foco é a escola são diversas as possibilidades deste rico debate que questiona os territórios escolares como ambiente propício ao desenvolvimento de valores, princípios e práticas, ora de hospitalidade, afetividade, solidariedade, ora de indiferença, individualismo e violência.

Imagem: Unsplash

Figura 1. Ações afirmativas representam instrumento de justiça social

E quando o assunto é a política educacional, quais os limites entre a justiça e o direito?

A justiça restaurativa em sua relação com a política pública e sua introdução como prática nas escolas é analisada na perspectiva da tensão entre justiça e educação, na pesquisa de Schilling e Kowalewski (2021) – O difícil encontro da justiça com a educação: problematizações sobre a justiça restaurativa. As autoras depreendem que políticas como a inserção de projetos de justiça restaurativa nas escolas reverberam como esperança de melhora no convívio por meio da formalização da micro justiça como meio de se pensar em uma escola justa.

Em Concepções de justiça escolar em documentos do PNUD e da UNESCO, Rezende (2021) aborda as noções de justiça social, justiça escolar e escola justa como direito, baseada nos Relatórios do Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e dos Relatórios de Monitoramento da Educação para Todos, da UNESCO, enquanto prescrições políticas implementadas nos âmbitos micro e macrossocial, com vistas à mudança social. Recomenda-se que tais documentos denotem as singularidades locais em termos da diversidade de conflitos presentes, ao invés de propor soluções prescritivas de ampla abrangência territorial.

O direito à educação de qualidade é relacionado ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), em A efetivação do direito à educação de qualidade como ação do Ministério Público de Pernambuco, uma vez que que responde as demandas por direitos infanto-adolescentes. Com este olhar, Nascimento e Marques (2021) tratam das concepções de educação justa com foco na garantia dos direitos. Estes autores observam que os marcos legais contribuem para que instituições como o Ministério Público de Pernambuco configure-se como importante aliado para a restauração dos direitos educacionais, contribuindo para o atingimento da almejada justiça na educação.

Em Educação em direitos humanos no currículo das licenciaturas de instituições federais de educação superior, Silva, Caputo e Veras (2021) analisam os currículos dos cursos de licenciatura ofertados por instituições federais de ensino superior, para identificar como a Educação em direitos humanos está inserida nesses currículos, tendo por referência a Resolução n. 01/2012 do Conselho Nacional de Educação. Ainda que a inserção de temas relativos aos direitos humanos em uma ou mais disciplinas é observada em alguns destes cursos, o estudo conclui que é preciso ampliar tal debate por meio da inserção da educação em direitos humanos, não apenas como uma disciplina ou por meio de conteúdos isolados, mas que seja uma formação transversalizada em todo o currículo.

Soares (2021) discute as contribuições de Nancy Fraser para o debate sobre redistribuição e reconhecimento, analisando possíveis repercussões na relação entre justiça e educação em Educação, redistribuição e reconhecimento: contribuições do pensamento de Nancy Fraser para a debate sobre justiça. O autor aponta para o necessário debate teórico deve ser travado de forma que princípios como redistribuição e reconhecimento influenciem o debate educacional, especialmente no momento social e político contemporâneo.

É possível pensar a justiça por meio da educação no atual contexto das políticas educacionais brasileiras?

A resposta a esta pergunta é complexa, como podemos observar a partir dos escritos de tantos autores. Pensar a justiça implica, necessariamente, repensar a educação, seus princípios, dilemas, estratégias. A atual política educacional brasileira vem mostrando suas faces diante de tamanhos desafios, a exemplo do trabalho pedagógico em isolamento social em grande escala. Estes desafios perturbam e estimulam a organização escolar a se repensar, repensar seus valores.

As diferentes abordagens apresentadas mostram a riqueza da temática, suas dificuldades e desafios e mostram caminhos possíveis para a ação nas escolas e em seu cotidiano. A garantia de direitos fundamentais em contraponto ao altruísmo é estudada com base em autores que defendem as noções de redistribuição e reconhecimento como princípios de justiça que embasam uma educação em direitos humanos e uma possível escola mais justa. Trata-se de um desafio necessário e urgente, que envolve todos e todas, na proposição e realização de políticas públicas e para um cotidiano escolar mais justo.

Referências

BOTLER, A. Gestão escolar para uma escola mais justa. Educar em Revista [online]. 2018, vol. 34, pp. 89-105 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/0104-4060.57217. Available from: https://www.scielo.br/j/er/a/HLhNJHkKWCH387zpsDYBgVS/abstract/?lang=pt

SCHILLING, F. and RESENDE, J.M. Quando as escolas públicas se põem à prova da inclusão escolar: sobre as artes de fazer o comum – plural – nas escolas, em busca do justo. ETD: Educação Temática Digital [online]. 2018, vol. 20, pp. 301-304 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.20396/etd.v20i2.8651992. Available from: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-25922018000200301&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

UNESCO. Relatório de monitoramento global da educação – resumo, 2020: Inclusão e educação: todos, sem exceção. 2020 [viewed 5 January 2022]. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373721_por

Link (s)

Seção temática – Justiça e Educação: um debate necessário – Educação e Pesquisa vol. 47 – 2021: https://www.scielo.br/j/ep/i/2021.v47/

Para ler os artigos, acesse

BOTLER, A. Injustiças vividas e demandas por reconhecimento numa escola pública: expressões de estudantes de ensino médio. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e238752 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147238752. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/RdHp7sMCmGgp7fgvM7MQtVm/abstract/?lang=pt

MOREIRA, A.U. and PULINO, L.H.C.Z. Liberdade é conquista social? Freire e Vigotski na perspectiva da educação em direitos humanos. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e226278 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147226278. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/dqrP5GJcz8bsD6fQhG7qnDc/?lang=pt

NASCIMENTO, J.A. and MARQUES, L.R. A efetivação do direito à educação de qualidade como ação do Ministério Público de Pernambuco. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e239022 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147239022. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/6zpXy7VpTwkh86qQchpZDYn/?lang=pt

PINTO, U.S.C. Injustiças e astúcias associativas nas ocupações das escolas públicas do Rio de Janeiro em 2016. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e238861 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147238861. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/VsZXFrG85NxX54BsTRqQ7nC/?lang=pt

RESENDE, J.M., et al. Compor o reconhecimento: explorar laços com os outros na escola. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e238697 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147238697. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/jcyLkbqyDdzqBYMmVwgXmrv/abstract/?lang=pt

REZENDE, M.J. Concepções de justiça escolar em documentos do PNUD e da UNESCO. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e238594 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147238594. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/NYhQ8ScYqRcRqfj368K6ppj/?lang=pt

SCHILLING, F. and KOWALEWSKI, D. O difícil encontro da justiça com a educação: problematizações sobre a justiça restaurativa. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e238777 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147238777. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/8DZxvW5dS89qfP5KSh4w8rF/?lang=pt

SILVA, D.L., CAPUTO, M.C. and VERAS, R.M. Educação em direitos humanos no currículo das licenciaturas de instituições federais de educação superior. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e244510 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147244510. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/Ww8gwj3TyTzgqcWzBBzvHZv/

SOARES, Swamy de Paula Lima. Educação, redistribuição e reconhecimento: contribuições do pensamento de Nancy Fraser para a debate sobre justiça. Educação e Pesquisa [online]. 2021, vol. 47, e246094 [viewed 5 January 2022]. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147246094. Available from: https://www.scielo.br/j/ep/a/FTV4yXjkfhtzgJpMGnVgMVc/?lang=pt

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

BOTLER, A. and SCHILLING, F. Justiça e educação: como pensar uma escola justa? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2022 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2022/01/06/justica-e-educacao-como-pensar-uma-escola-justa/

 

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