As províncias do império: novas abordagens e perspectivas para pensar o Brasil oitocentista

Wederson de Souza Gomes, Assistente de Comunicação da Revista Almanack, Doutor em História pela UFOP, Ouro Preto, MG, Brasil.

Logo especial do periódico Almanack em homenagem ao bicentenário da independência[WEDERSON DE SOUZA GOMES] Como você enxerga a renovação historiográfica sobre o Império do Brasil e como ela contribui para pensarmos a formação do Estado nacional brasileiro?

[CARLOS EDUARDO FRANÇA] Trata-se de um movimento que vem acontecendo nas últimas três décadas, especialmente no que se refere à história do império e desse Brasil oitocentista. Uma renovação historiográfica tanto nas perspectivas teórico-metodológicas quanto uma renovação em relação a temas, abordagens e objetos de estudo. Eu acho que todo esse movimento amplo e vigoroso que vem de diversos autores, algo que é difícil de quantificar, permite uma matização dessas interpretações mais clássicas da historiografia. Muitas dessas interpretações foram forjadas no bojo da luta política e outras que foram criadas e forjadas pela própria historiografia. Um exemplo é a percepção de compreender o oitocentos como uma discussão entre opressores e oprimidos pura e simplesmente, ou observar uma proeminência do econômico sobre o político e cultural. Ou seja, todas essas questões estão sendo postas sob outro olhar. Resgato aqui o trabalho Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil, de autoria das professoras Cecília Helena Salles de Oliveira (minha orientadora no mestrado e no doutorado) e Izabel Andrade Marson, no qual elas dizem que esses novos estudos vem tocando num ponto fulcral em uma das mais persistentes interpretações do Brasil oitocentista que é o de haver uma suposta incongruência entre os preceitos e as práticas liberais e a sociedade, porque essa sociedade brasileira seria marcada pela escravidão e pela concentração fundiária. Não que essas coisas não existissem no Brasil, mas são elementos muito complexos e é um fato que em nenhum lugar do mundo onde o liberalismo vai ser adotado como paradigma político e econômico existiu um casamento perfeito entre as ideias e a realidade social. Esse suposto descolamento acontece no mundo inteiro, claro que de acordo com as especificidades locais.

Pintura da natureza. Araucárias, céu esverdeado, arbustos. No fundo pequenos morros cortando o horizonte. Um caminho de terra batida no centro, ao lado esquerdo uma rocha. No caminho dois ou três animais que podem ser cavalos ou jegues e duas pessoas montadas em um deles. Parece ter uma pessoa atrás acompanhando. Borda amarelada e larga dos lados e na base.

Imagem: Acervo de Iconografia / Instituto Moreira Salles (Brasiliana Iconográfica).

Figura 1. Johann Moritz Rugendas. Serra Ouro-Branco.dans la province de Minas Geraes, 1827-1835. Viagem pitoresca através do Brasil. Europa-França-Ilha de França-Paris/Acervo de Iconografia/Instituto Moreira Salles. 33,5 x 52,8 cm. 

[WSG] Como você vislumbra o estudo das províncias nesse movimento de renovação historiográfica?

[CEF] O olhar sobre as províncias é, em certa medida, um desdobramento e um exemplo dessa renovação historiográfica. Temos alguns estudos clássicos como o da Miriam Dolhnikoff, Maria de Fátima Gouvêa, dentre outros como André Machado, Wlamir Silva, ou seja, historiadores e historiadoras ao redor do Brasil que vem estudando o período imperial pelo prisma das províncias. A ideia de se estudar o provincial traz uma série de contribuições com relação ao Brasil oitocentista. A primeira delas é a relativização dessa visão Rio Centrica que o Evaldo Cabral de Mello sempre criticou, de pensar o todo através da lente do Rio de Janeiro. Obviamente que o Rio de Janeiro tinha mais estudos, tinha uma documentação de fácil acesso e foi a capital por muito tempo. Acho que isso ajuda a relativizar essa visão rio centrica. Justamente por isso, os estudos da província acabam evidenciando as realidades e as especificidades locais. Ou seja, a gente consegue perceber isso quando vai estudar determinadas instituições, por exemplo, determinados rótulos de grupos políticos, em que fica perceptível que os conceitos não são ajustáveis às realidades e cores locais. Porém, se ficássemos apenas nisso, faríamos uma espécie de antiquarismo de especificidades, o que não é o caso. Acho que o mais interessante nesses estudos é justamente investigar as relações entre as partes e o todo, ou seja, de que forma grupos provinciais tentam – olhando para o Rio de Janeiro como centro do império – se inscrever, seja na política, na administração pública, nas rotas de comércio e também nas teias que vão se constituindo. Acho que é exatamente o provincial não como uma parte específica, descolada do centro decisório do império, mas de uma forma articulada.

[WSG] Como você enxerga a questão dos grupos políticos e sua articulação com o Centro-sul naformação do Estado nacional brasileiro?

[CEF] Como pontuado na questão anterior, acho que essas ideias acabam redimensionando alguns debates clássicos da historiografia, como, por exemplo, a ideia da centralização no Primeiro Reinado. Fala-se muito da polarização centro e localidade, ou centralização e descentralização. Quando, na verdade, isto não está posto ainda dessa forma. Por exemplo, nesse começo da construção do Estado nacional, vamos pensar ali nos anos vinte, até o começo dos anos trinta, a questão é muito mais de que forma se construir um Estado constitucional; ou seja, a matriz é muito mais a discussão do constitucionalismo do que propriamente o funcionamento pleno do sistema parlamentar, que é uma coisa muito cara ao Segundo Reinado. Às vezes, por já conhecermos o desfecho, a gente antecipa questões que não estavam postas naquele momento, ou pelo menos, como estavam postas mais para frente. Eu acredito, e essa é uma das minhas hipóteses de trabalho, que a formação do Estado nacional não foi mero produto de cooptação de grupos locais, mas um processo de intensa negociação, em que grupos provinciais entraram de formas distintas na máquina pública imperial. Não significa que esses grupos entraram de forma homogênea. Não, na verdade, esses grupos provinciais têm diferenças gritantes em seu interior, eles se inscrevem de forma nuançada. Alguns chegam até o Executivo, outros se alocam na Câmara dos deputados, alguns conseguem almejar o Senado, alguns ficam mais na esfera local, nos Conselhos Provinciais. Depois, futuramente, nas Assembleias Legislativas. O fato é que a inserção desses grupos se dá de uma forma bastante nuançada. Na minha pesquisa, eu estudei mais o caso de São Paulo e Minas Gerais, em articulação com o Rio de Janeiro. Eu acredito que é preciso pensar a província não apenas como um território administrativo, como uma jurisdição específica. A província é mais do que um espaço, um território, ela acaba se tornando, inclusive, um tópos da luta política. O que eu quero dizer com isso: o provincial, ele é o provincial mesmo, é o espaço da província, mas também é um argumento, um artefato da luta política. Ele é tanto meio da luta política quanto o fim da luta política.

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

GOMES, W.S. As províncias do império: novas abordagens e perspectivas para pensar o Brasil oitocentista [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2022 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2022/09/14/as-provincias-do-imperio-novas-abordagens-e-perspectivas-para-pensar-o-brasil-oitocentista/

 

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