Arte como Veículo e as investigações de Jerzy Grotowski para além do século XX

Juliana Coelho de Souza Ladeira, Editora para popularização científica da Revista Brasileira de Estudos da Presença e pós-doutoranda em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Logo do periódico Revista Brasileira de Estudos da Presença

O primeiro dossiê temático da Revista Brasileira de Estudos da Presença, publicado em 2013, foi dedicado a Jerzy Grotowski (1933-1999), encenador polonês e professor do performer. Trata-se de um número vigoroso, tanto pela riqueza e qualidade de seus textos quanto pela quantidade de artigos nele apresentados e pela variedade de horizontes dos pesquisadores participantes. O interesse em evidenciar o dossiê parte da importância histórica que esses trabalhos tiveram para a pesquisa em teatro no Brasil, principalmente no que diz respeito a investigações ampliadas sobre as possibilidades do performer1, seja ele nomeado como “ator” ou “atuante”, e de seus instrumentos de trabalho, dentro do campo teatral e para além dele. 

Se as diversas fases do trabalho de Jerzy Grotowski e de seus colaboradores Thomas Richards e Mario Biagini são revisitadas pela literatura, dando ênfase a radicalidade e a inventividades dos percursos, o dossiê concentra-se na fase da Arte como Veículo, sendo o trabalho do Workcenter abordado em pelo menos oito artigos e em outros estudos que se relacionam de modo menos direto com este.

O dossiê contempla tanto publicações inéditas dos principais artistas da experiência do Workcenter, como Richards (2013) e Biagini (2013a e 2013b), como o de pesquisadores brasileiros mais experimentados e versados na trajetória e desdobramentos do legado de Grotowski e que desenvolvem diálogos a partir de suas próprias perspectivas de pesquisa. 

Capa do "Dossiê Grotowski" da Revista Brasileira de Estudos da Presença. A imagem apresenta um fundo vermelho-vinho, sobre o qual estão o logo do periódico na parte superior da capa, uma fotografia de Jerzy Grotowski no centro, e o título do dossiê com alguns logos institucionais na parte inferior.

Imagem: Revista Brasileira de Estudos da Presença.

É o caso de Fernando Mencarelli (2013), que repensa as fases do Parateatro (1969-1978) e do Teatro das Fontes (1976-1982) a partir das questões levantadas pela transculturalidade das práticas experimentadas e variedade cultural dos participantes: “os mapas corporais que mobilizamos a partir de nossa cultura quando experimentamos práticas corporais criadas em outros contextos” (ibidem, p. 133). 

Em outro estudo, Cassiano Sydow Quilici (2013) aborda os trânsitos pelos “degraus da escada” da verticalidade e o termo awareness, tendo as experiências alquímicas, a noção cristã da escada de Jacó e sua própria prática budista como interlocutores principais. Em contrapartida, Mauro Rodrigues (2013) desenvolve paralelos entre os entendimentos da noção operante de “essência” para Grotowski e George Gurdjieff, enquanto Carla Andrea Lima (2013) desenvolve uma confrontação psicanalítica da via negativa. 

Organon, termo desenvolvido por Grotowski na fase parateatral, parece conduzir e operar conceitualmente a relação entre teatro, técnica e tradição no texto de Daniel Plá (2013), referindo-se aos instrumentos de trabalho de predileção do mestre polonês. Oriundos e, ao mesmo tempo, resultantes de tradições diversas, esses instrumentos de trabalho congregam numerosos aspectos dos indivíduos e das sociedades dos quais são originados. 

Fotografia em preto e branco de Jerzy Grotowski, um homem branco com cabelos, barba e bigode de tamanho médio e brancos, usando óculos e vestindo terno e gravata pretos.

Imagem: UOL.

Além disso, pesquisadores estrangeiros2 compõem o volume, ampliando as perspectivas de um trabalho curatorial eminentemente brasileiro. Reflexões importantes acerca da obra de Grotowski também nos são apresentadas, por exemplo, sobre as influências e inspirações ainda não suficientemente estudadas acerca do poeta3 Adam Mickiewicz, e do próprio romantismo polonês no teatro de Grotowski (Salata, 2013); sobre os paradoxos e paradigmas da relação atores-espectadores no Teatro Laboratório (Boisson, 2013); ou a apresentação histórica de alguns dos tesouros legados pelo encenador/professor, sejam eles escritos, orais transcritos, filmados e/ ou experienciados presencialmente e compartilhados ao longo dos anos com diferentes colaboradores (Attisani, 2013).

A escolha dos autores em iluminar os sentidos, contextualizar os empregos e confrontar determinados entendimentos de termos basilares da práxis de Grotowski – tais como essência, presença, organicidade, encontro, performer, contato e origem – evidenciando suas contínuas reelaborações e afinações acerca destes, transforma a dinâmica de leitura dos textos. Nesse sentido, os artigos se encontram num encadeamento multidimensional, se expandindo e sendo porosamente expandidos uns pelos outros. 

O dossiê finaliza com uma segunda seção dedicada a resenhas atentas de livros de Jerzy Grotowski, como o “Em Busca de um Teatro Pobre” e livros sobre ele “Palavras Praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959–1974”; “Avec Grotowski”; além de livros de seus colaboradores, como “Trabalho de Voz e Corpo de Zygmunt Molik: o legado de Jerzy Grotowski”, e Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas”, de Thomas Richards. Finalmente, trata-se de um volume que nos permite diferentes caminhos de leitura.

Foto em preto e branco de Jerzy Grotowski e Thomas Richards. Richards, à esquerda, tem cabelo curto e veste uma camisa de cor clara, enquanto Grotowski, à direita, possui barba longa, usa óculos e está vestido com um terno escuro.

Imagem: Maurizio Buscarino.

Em 2022, depois da pandemia de COVID-19, Richards anunciou publicamente o fim do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, depois de 36 anos de atividades4. Desta maneira, uma leitura contemporânea deste Dossiê produz inevitavelmente o distânciamento histórico próprio daqueles que testemunham o fim de uma época. Se o século XX foi considerado o do encenador russo Constantin Stanislavski, Antonio Attisani aposta que o século XXI será o da descoberta da atualidade da investigação do mestre polonês, que poderá fundar uma outra cultura teatral, alicerçada na “presença e no encontro” (Atisani, 2013). 

Jerzy Grotowski foi profundamente exigente em suas indagações transculturais no campo das artes e das tradições performáticas, o que demandou investigações longas e aprofundadas – como uma escavação verticalizada dos corpos, ao mesmo tempo, individual e coletiva, retirando o que seria supérfluo e parasitário da existência humana, em busca do essencial

Pela radicalidade de suas escolhas, pela capacidade de compreensão sobre o que é essencial em cada momento particular de seu trabalho e de sua vida, é que temos também a intuição de que os diferentes legados de Grotowski ainda serão descobertos e redescobertos nesses tempos futuros do Antropoceno. Talvez, as próximas gerações confrontarão as pesquisas de Grotowski, encontrando outras respostas, e avançarão em direções ainda não trilhadas, transformando as lacunas e as ambiguidades desses legados em potencialidades. 

Confira a seguir um vídeo de apresentação da edição, feito por Tatiana Motta Lima, uma das maiores especialistas das práticas de Grotowski, além de editora convidada da Revista Brasileira de Estudos da Presença, que assina a apresentação do dossiê (Lima, 2013a) e de um dos artigos nele publicado (Lima, 2013b). 

Notas

1. Em “O Performer”, texto escrito em 1987, Grotowski (1997) delineia o que seria o performer, dentre outras coisas, como um pontífex (aquele que constrói pontes), além de descrever seu papel nessas investigações como professor do performer.

2. Apesar de não terem sido elencados aqui nesta resenha, por contingências relativas ao formato, convidamos os leitores e leitoras a consultarem os demais artigos que compõem o dossiê.

3. Adam Mickiewicz é nomeado como um aliado por Jerzy Grotowski (1987) no texto Tu es fils de quelqu’un (Você é filho de alguém), sendo essa uma das referências feita ao poeta, entre outras mais.

4. Consideramos aqui a fundação inicial do Workcenter of Jerzy Grotowski, em 1986.

Referências

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GROTOWSKI, J. Em Busca de um Teatro Pobre. [1965]. In: O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.

GROTOWSKI, J., et al. ‘Tu Es Le Fils de Quelqu’un’ [You Are Someone’s Son]. The Drama Review: TDR, vol. 31, no. 3, 1987, pp. 30–41. 

GROTOWSKI, J. Performer. [1987]. In: WOLFORD, Lisa. (org); SCHECHNER, R. (org). The Grotowski Sourcebook. New York: Routledge, 1997.

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MENCARELLI, F.A. Mapas e Caminhos: práticas corpóreas e transculturalidade. Revista Brasileira de Estudos da Presença [online]. 2013, vol. 3, no. 1, pp. 132–143 [viewed 05 September 2024]. https://doi.org/10.1590/2237-266036945. Available from : https://www.scielo.br/j/rbep/a/rtxFYJNBjyVMgxYxNCKMWtj/ 

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RODRIGUES, M. Essência e Personalidade em Grotowski e Gurdjieff. Revista Brasileira de Estudos da Presença [online]. 2013, vol. 3, no. 1, pp. 97–115 [viewed 05 September 2024]. https://doi.org/10.1590/2237-266036939. Available from : https://www.scielo.br/j/rbep/a/94KDKT8vKkTHKgT47Tbj6mp/ 

SALATA, K. O Homem Interior e sua Ação: Jerzy Grotowski e a herança de Adam Mickiewicz e do romantismo polonês. Revista Brasileira de Estudos da Presença [online]. 2013, vol. 3, no. 1, pp. 39–70 [viewed 05 September 2024]. https://doi.org/10.1590/2237-266033248. Available from : https://www.scielo.br/j/rbep/a/kyZhKrs3KvLwxB4PM95dkjP/ 

RICHARDS, T. Sobre The Living Room. Revista Brasileira de Estudos da Presença [online]. 2013, vol. 3, no. 1, pp. 267–274 [viewed 05 September 2024]. https://doi.org/10.1590/2237-266033250. Available from : https://www.scielo.br/j/rbep/a/Y5LKVzQHDwLtFLH3qVRvXnR/ 

Links externos

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

LADEIRA, J.C.S. Arte como Veículo e as investigações de Jerzy Grotowski para além do século XX [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/09/05/arte-como-veiculo-e-as-investigacoes-de-jerzy-grotowski-para-alem-do-seculo-xx/

 

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