A coragem das Mães Waldorf para parir

Raquel Littério de Bastos, Cientista Social, Escola Paulista de Medicina, Unifesp de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Pedro Paulo Gomes Pereira, Antropólogo, Escola Paulista de Medicina, Unifesp de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

A medicina antroposófica compartilha do ideário do parto natural e sugere às mulheres formas peculiares de como se comportar na hora da concepção, da gestação e do parto. A Antroposofia é uma ciência espiritual, elaborada pelo pedagogo e esotérico Rudolf Steiner e fundada na Suíça no século XIX. A Antroposofia surge no Brasil na década de 1930 e na década de 1960 inaugura a primeira clínica antroposófica, a Clínica Tobias, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Steiner, inspirado nos aspectos do romantismo alemão, desenvolveu um sistema terapêutico integrando terapias e medicina romântica, aceitas atualmente no Sistema Único de Saúde (SUS) como uma racionalidade médica. A pesquisa apresenta os relatos das experiências da gestação e do parto das mães da comunidade da Demétria e os desafios enfrentados em relação aos procedimentos obstétricos impostos pela biomedicina, no hospital da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu.

Nos episódios de gestação e parto relatados pelas interlocutoras na Demétria, há uma busca por um equilíbrio emocional e controle corporal. Esse equilíbrio funciona como formação e construção permanente do “caráter materno”, articulando aspectos emocionais, corporais e espirituais. A busca é a da construção de uma gramática emocional, estabelecendo condutas para a expressão dos sentimentos (MAUSS, 1984) como a dor e o sofrimento, condicionando-os a uma atitude de “coragem e a dignidade” frente aos desafios da maternidade. A Antroposofia destaca a importância em diferenciar a dor como sensação física da dor como sofrimento imbuído de emoção. Gritar de dor, fora deste contexto prescrito, é desaconselhado para o momento da concepção. Ao evitar a dor do parto, a mãe estaria desperdiçando uma oportunidade de superação física e espiritual, importante em sua “formação moral de mãe”. Se ocorrer o grito da mãe, então que seja como um instrumento de conquista: um grito de luta (ZEKHRY, 2014). É importante mencionar que a Antroposofia não é contra a anestesia no caso de dor extrema. No entanto, há uma expectativa durante o parto de que a mulher faça “um silêncio religioso”, somente interrompido pelo choro do bebê. No entanto, não se tratava de desejar a dor e o sofrimento como forma de redenção, mas de enfrentá-los com bravura, construindo uma estética do parto, tornando-o belo.

A experiência do parto hospitalar é descrita como traumática entre as gestantes da Demétria. Mesmo com alto nível de escolaridade e conhecimento dos seus direitos sociais, essas mulheres da Demétria são atropeladas pelas normas e procedimentos biomédicos, que desconsideram suas escolhas e práticas alternativas de saúde. Os procedimentos hospitalares, mesmo quando previamente combinados com as gestantes, não são respeitados. Em hospitais-escolas, como é o caso do Hospital das Clínicas da Unesp de Botucatu, ocorre a violência da “vagina-escola” (DINIZ et al. 2016): há uma preocupação com o que consideram “parto humanizado”, mas sem atentar e respeitar os direitos das mulheres. Os profissionais de saúde do hospital parecem não ter uma compreensão mais refinada sobre o que significa a preparação corpórea e espiritual de um parto em outra racionalidade médica. Para as mulheres da Demétria, conforme vai ocorrendo a metamorfose corpórea da gestante, mediante dietas e mudança de hábitos, sobrevém também uma transformação interna espiritual, guiada pela busca da coragem para o parto perfeito. Coragem inspirado no Arcanjo Micael.

Na Clínica Tobias os partos relatados descreveram rituais distintos dos procedimentos hospitalares. O trabalho de parto se iniciava em um banho para a gestante. Na banheira, eram colocados óleos de lavanda ou de arnica com bétula para amenizar as dores e aquecer a mãe e, assim, facilitar o desfecho. Água e outros alimentos leves – como chá com torradas, picolé e água de coco – eram ingeridos durante o trabalho de parto, caso esse se estendesse por muitas horas. Sobre a gestante eram sobrepostos vários véus coloridos, que iam sendo retirados, um após o outro, conforme ia acontecendo o nascimento da criança. Todo ritual acontecia em um clima de intimidade e sem a utilização de medicamentos alopáticos.

Distantes da Clínica Tobias, os moradores da Demétria precisaram estabelecer uma relação amistosa com a maternidade da Unesp de Botucatu, com a intenção de amenizar o impacto do parto realizado no hospital. Nesta arena de disputas, as Mães Waldorf da comunidade da Demétria temem uma reação hostil dos profissionais de saúde diante da acusação de violência (SOUZA, 1994) e, por isso, se submetem a práticas que elas não desejam e mesmo buscam evitar, apesar da melhoria no acolhimento do parto humanizado.

Para saber mais acesse o artigo “Mães Waldorf: gestação e parto na comunidade antroposófica” publicado em Interface: Comunicação, Saúde e Educação (v. 22, n. 65).

Referência

DINIZ, C. S. G. et al. A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface (Botucatu) [online]. 2016, vol.20, n.56, pp.253-259. [viewed 2 July 2018]. ISSN 1414-3283. DOI: 10.1590/1807-57622015.0736. Available from: http://ref.scielo.org/g2bqpv

MAUSS, M. (Org.). A expressão obrigatória dos sentimentos. Ensaios de Sociologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1984. p. 211-233.

SOUZA, M. C. C-sections as ideal births: the cultural constructions of beneficence and patients’ rights in Brazil. Camb Q Health Ethics, v. 3, n. 3, p. 356-366, 1994. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/ cambridge-quarterly-of-healthcare-ethics/article/div-classtitlec-sections-as-ideal-births-the-cultural-constructions-of-beneficence-and-patientsandapos-rights-in-brazildiv/ B2B6283D47BB0CDCDF2BC7203878357C

ZEKHRY, N. Gestação e parto na Antroposofia. Weleda, 2014. Disponível em: http://www.weleda.com.br/noticias/detalhe%20noticia/default. asp?nt=1009

Para ler o artigo, acesse

BASTOS, R. L. and PEREIRA, P. P. G. Mães Waldorf: gestação e parto na comunidade antroposófica. Interface (Botucatu) [online]. 2018, vol.22, n.65, pp.505-516. [viewed 2 July 2018]. ISSN 1807-5762. DOI: 10.1590/1807-57622016.0651. Available from: http://ref.scielo.org/fk8389

Link externo

Interface – Ciência, Saúde e Educação – ICSE: www.scielo.br/icse

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

BASTOS, L. R. and PEREIRA, P. P. G. A coragem das Mães Waldorf para parir [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/07/03/a-coragem-das-maes-waldorf-para-parir/

 

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