O que podem dizer os apelidos sobre a realidade escolar?

José Machado Pais, Professor/Pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

José Machado Pais, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa descobriu que os apelidos que circulam entre os jovens estudantes criam mundos de significado ao serem tecidos nas interações cotidianas. A pesquisa, centrada em escolas do ensino secundário de Portugal e do Brasil (Estado do Ceará), mostra que, por efeito dos apelidos, os jovens desenvolvem uma consciência corporal. Os resultados da pesquisa, confrontando os apelidos inventariados nas escolas brasileiras e portuguesas, foram publicados no periódico Educação & Realidade (v. 43, n. 3), sob o título “A simbologia dos apelidos na vida cotidiana escolar”. A análise dos apelidos inventariados desvela dimensões ocultas da vida escolar que escapam às metodologias convencionais da sociologia da educação. Por exemplo, o assédio ou bullying sexual exercido por alguns professores, realidade indiciada pelos apelidos que portam: Sexy (diz que tem excesso de gostosura), Piroca (olha muito para os meninos), Pedófilo (tem atos de pedófilo), entre outras.

Dos pés à cabeça o corpo é uma fonte metonímica. Um jovem é apelidado Cabeção por ter cabeça grande; outro é Capuchinho Vermelho por corar com facilidade. Dentes de Mula, desagradado com o apelido, recorreu a serviços odontológicos para corrigir as saliências dentais. O tratamento resultou, mas o apelido não o abandonou.

Os apelidos também mostram que corpo é investido como instrumento de sedução, num clima de disputas e conquistas. As moças são as mais penalizadas com as ousadias, como acontece com uma Amiga fura olho (por roubar namorados) e uma Chiclete (por grudar nos meninos). Ainda no universo feminino, enquanto no Brasil a bunda aparece como referente mais invocado (dependendo do volume, Bunda Seca ou Mulher Melancia), em Portugal os apelidos são mais estimulados pelas mamas  (Happy Boobs, Sweet Boobs, Maxi Boobs).

Alguns apelidos provocam efeitos discriminatórios, de pendor racial. Entre os jovens brasileiros surgiu um jovem apelidado de Bomba (ele é pretinho) e outro Sem Sangue (é branco demais). Entre os portugueses há uma moça apelidada Chamuças (por ser de origem indiana) e outra chamada Big Mamma (é negra, grande e gorda); outro jovem, da periferia de Lisboa, ganhou o apelido de Cigano sem pertencer à etnia. O apelido foi dado por vizinhos quando descobriram que a polícia arrombou a porta da casa onde vivia, por suspeita de tráfico de droga. A justificação: “como em outros apelidos, brilha um flash, uma imagem, uma ideia de referente. A sua simples atribuição transporta-o para um mundo complexo de representações sociais, estereótipos, processos de estigmatização que ultrapassam os limites da individualidade.”

Numa escola privada de Fortaleza, o apelido dado a uma jovem (Menina do Gueto) foi determinado pelo seu diferente linguajar. A interpretação adiantada sugere que em escolas privadas, dada a sua maior homogeneidade social, as diferenças são menos toleradas. Neste sentido, os apelidos podem também ser um interessante recurso didático e educativo se forem trabalhados como instrumentos de reflexão, nas próprias salas de aula, para se discutirem os valores da convivência, do respeito e da tolerância.

Finalmente, os apelidos sugerem a existência de brechas de comunicação entre os jovens e alguns professores com dificuldades em acompanhar e incorporar na sua prática pedagógica os avanços proporcionados pelas novas tecnologias de comunicação. Por exemplo, um professor ganhou o apelido de Máquina de Escrever porque continuava a datilografar os testes de avaliação na sua máquina de escrever. Outro era o Powerless porque não sabia usar o Powerpoint. Outro ainda era o Antivírus porque sempre se queixava de problemas com o computador.

No universo dos apelidos, a criação léxica aparece frequentemente associada à diversão (PAIS, 2015; 2016). Porém, entre os jovens estudantes os apelidos também podem ser usados como uma oportunidade de denúncia relativamente ao que se passa na escola. Quando os jovens da periferia pobre de Lisboa apelidaram um pavilhão da sua escola com o nome de Sibéria tinham razões sérias para a escolha. Na sua escola sentiam-se desterrados e regelados durante os períodos mais invernosos das aulas. Sendo emanações da vida social, os apelidos não integram um sistema arbitrário. Produzem-se no mundo de que fazem parte. Escondem e revelam enigmas que deslizam dos atos de nomeação para as coisas nomeadas, e vice-versa. Por isso mesmo — e este é um desafio que se deixa para futuras pesquisas — os apelidos constituem um tesouro de conhecimento por explorar.

Referências

PAIS, J. M. Das nomeações às representações: os palavrões numa interpretação inspirada por H. Lefebvre”. Etnográfica, v. 19, n. 2, p.  267-289, 2015. ISSN: 2182-2891 [viewed 22 August 2018]. DOI: 10.4000/etnografica.4000. Available from:  http://etnografica.revues.org/4000

PAIS, J. M. Enredos sexuais, tradição e mudança: as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. 2016.

Para ler o artigo, acesse

PAIS, José Machado. The Symbology of Nicknames in the School Everyday Life. Educ. Real. [online]. 2018, vol.43, n.3, pp.909-928. ISSN 0100-3143. [viewed 11 October 2018]. DOI: 10.1590/2175-623674801. Available from: http://ref.scielo.org/z425vz

Link externo

Educação & Realidade – EDREAL: www.scielo.br/edreal

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

PAIS, J. M. O que podem dizer os apelidos sobre a realidade escolar? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/10/19/o-que-podem-dizer-os-apelidos-sobre-a-realidade-escolar/

 

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