Por que é necessário criar instituições metropolitanas: entrevista com Thiago Hoshino e Rosa Moura trata do Estatuto da Metrópole

Camila Rodrigues da Silva, Assessora de comunicação do Cadernos Metrópole, São Paulo, SP, Brasil

A criação do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) foi um marco central da política urbana brasileira, mas se manteve periférica em redação a questão metropolitana. O tema terminou restrito às diretrizes gerais e à regra de participação popular nos organismos gestores regionais. Diante dessa realidade, um novo estatuto parecia necessário, um Estatuto da Metrópole – instrumento jurídico que teve seu projeto original criado em 2004, mas que só foi aprovado em 2015.

A questão, no entanto, é anterior aos anos 2000: o debate brasileiro sobre a governança metropolitana após 1990 assinala que, após o esvaziamento do planejamento metropolitano tecnocrata, centralista e autoritário, que caracterizava a ditadura militar, emergiu um vazio institucional. Conforme explica Klink (2013), isso ocorreu porque, no bojo da redemocratização e da descentralização, os novos atores, principalmente os prefeitos eleitos e os movimentos sociais, não pautaram uma agenda metropolitana. No debate sobre a governança, a região metropolitana ficou “órfã” no pacto federativo brasileiro. Assim, essas áreas se caracterizaram pela proliferação de arranjos como os consórcios setoriais – particularmente em áreas temáticas como a saúde –, pelo esvaziamento ou extinção das autarquias estaduais, criadas nos anos 1970, e pela ocorrência de raríssimas inovações (KLINK, 2013, p. 83).

Rosa Moura

Rosa Moura

Thiago Hoshino

Thiago Hoshino

É sobre o Estatuto da Metrópole que o Caderno Metrópoles entrevista os autores Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino e Rosa Moura, que publicaram o artigo “Politizando as escalas urbanas: jurisdição, território e governança no Estatuto da Metrópole”, no Cadernos Metrópole (v. 21, n. 45). Thiago Hoshiro é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR vinculado ao Núcleo de Estudos em Direito Administrativo, Ambiental e Urbanístico (PROPOLIS/PPGD-UFPR) e ao Núcleo Constitucionalismo e Democracia (PPGD/UFPR). Atua como assessor jurídico do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Meio Ambiente e de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado do Paraná. Rosa Moura é doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná. É bolsista pesquisadora sênior no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA/PNPD), Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur), atuando no projeto “A Faixa de Fronteira e a Política Nacional de Desenvolvimento Regional” entre outros. A conversa trata da governança metropolitana, de forma ampla, mas também focando em alguns de seus aspectos, como a gestão financeira e a participação popular nos projetos metropolitanos.

 

1. O Estatuto da Metrópole completa cinco anos no ano que vem. De lá pra cá, de que forma ele impactou no desenvolvimento das regiões metropolitanas, em suas diversas dimensões?

O aniversário do Estatuto da Metrópole, em janeiro próximo, é motivo mais para reflexão do que para celebração. Se a lei trouxe uma série de intrumentos e de conceitos – como a governança interfederativa, o compartilhamento de responsabilidades, os indicadores para delimitação das unidades territoriais regionais, etc. – e teve o mérito de reacender discussões sobre o planejamento e a gestão metropolitanos, sofreu também um importante retrocesso em 2018, com a supressão das sanções e dos prazos para a edição dos Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado e a adequação institucional das RMs e AUs ao novo marco.

Fruto de pressão dos gestores, a retirada das hipóteses de improbidade administrativa, conjugada ao contexto nacional atual da política urbana e ausência de incentivos financeiros vinculados a um sistema próprio tendem a desacelerar bastante a implementação do Estatuto na prática.

Pode-se dizer que seu impacto, até o momento, se fez sentir mais no campo acadêmico e da pesquisa institucional (como recentes estudos do IPEA demonstram) do que na vida dos cidadãos das áreas metropolitanas brasileiras.

2. No artigo, vocês falam da incompatibilidade entre a cidade real e a cidade formal e da necessidade de se construir instituições em novas escalas geográficas. Poderia dar um exemplo de como isso ocorre na prática hoje, ou seja, quais são os problemas que decorrem dessa incompatibilidade? Há exemplos de modelos de governança metropolitana de outros países que sejam mais bem-sucedidos que o nosso?

Os exemplos mais concretos disso talvez sejam os serviços públicos de interesse comum: saneamento, transporte, gestão dos resíduos sólidos, entre outros. Sabe-se que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842, na qual o STF pela primeira vez falou em temas como concessão conjunta e colegiado metropolitano com repartição de poderes, decorreu de um conflito sobre as competências e poderes para organizar e licitar o abastecimento de água e a coleta de esgoto na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Em 2015, a divergência política entre o município de Curitiba e o governo do Estado do Paraná também levaram à fragmentação da Rede Integrada de Transporte que atendia à região metropolitana, com vários municípios, gerando situações como a repentina cobrança dobrada de tarifas e a necessidade de que os usuários tenham até três cartões de bilhete eletrônico para realizar um deslocamento que, antes, faziam com apenas um.

Estes são problemas de déficit de governança e de participação nas funções públicas de interesse comum. Isso se dá, em parte, pela natureza pouco cooperativa do próprio modelo de federalismo brasileiro. Em alguns outros países, tal integração é facilitada ou porque as regiões metropolitanas têm status de ente federativo próprio ou porque os municípios gozam de menor autonomia. Nenhuma das opções se aplica aqui, ao menos não sem uma modificação constitucional. Porém a passagem da lógica do consórcio voluntário para o planejamento integrado já significa um relativo avanço.

3. Outro aspecto abordado no artigo é o da construção política em escala metropolitana. É possível dizer que, hoje, existem espaços de participação popular nas decisões das metrópoles brasileiras? Se não, há instrumentos que tornariam isso possível?

O artigo chama atenção tanto para a construção política em escala metropolitana como para a construção política da escala metropolitana. A primeira tem viés mais pragmático e a segunda implicações mais epistemológicas. Não obstante, a ação transescalar depende de leituras que escapem ao que a literatura chama, de um lado, a “armadilha local”, e de outro, a “armadilha territorial”.

A armadilha local é a crença de que sempre a escala e as instâncias locais — em nosso caso, o município — são o locus privilegiado da democracia. Essa aposta pautou o movimento da reforma urbana na abertura democrática e ganhou força na Constituição de 1988. Ela tem sua razão e seus fundamentos, mas não pode ser tomada acriticamente e sem ressalvas. A experiências dos últimos trinta anos aponta que a escala local também pode ser o lugar do paroquialismo, do coronelismo e de uma equação sem saída: redistribuir os ônus e benefícios da urbanização dentro um único município pode não significar muito se não considerarmos também as desigualdades regionais. A armadilha do local é que ele pode reforçar a segregação e, por isso, a política urbana não diz apenas respeito aos municípios individualmente, olhando para dentro, como o art. 182 da Constituição pode induzir a pensar.

E o que nos leva à armadilha territorial? Ora, se as fronteiras administrativas não são ontológicas, não são dados do mundo e sim produtos sociais e políticos, não podemos naturalizá-las. A armadilha territorial é a crença na realidade ontológica do espaço estatal e nos modos como o estado se territorializa, considerando suas várias jurisdições. Logo, as escalas não são neutras, e é uma exigência do direito à cidade que, nas decisões sobre elas e sobre as metrópoles que elas instituem, possa a população participar efetivamente. Essa esfera de gestão democrática está prevista no Estatuto da Metrópole, mas ainda é evidentemente frágil na estrutura dos órgãos metropolitanos por todo o país.

4. O Estatuto da Metrópole facilitou a gestão financeira das entidades metropolitanas, dado este cenário de crise dos estados e municípios? De que forma os agentes privados têm se inserido nesse contexto de falta de recursos?

Este é um dos principais gargalos da lei. As disposições referentes ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano Integrado foram vetadas desde o início. Têm se projetado alternativas para o custeio das estruturas metropolitanas, mas isso depende de arranjos e circunstâncias bem mais casuísticas. Não nos parece que a aposta nos instrumentos urbanísticos negociais (como as Operações Urbanas Consorciadas e as Parcerias Público-Privadas), já bastante controversos quando aplicados sob o marco do Estatuto da Cidade, seja a panaceia para as regiões metropolitanas, como alguns querem vender.

É preciso lembrar que, se há um espírito de cidadania metropolitana que anima o Estatuto da Metrópole, também a escala é um poderoso dispositivo econômico — o termo ‘economia de escala’ aí está para prová-lo —, recomendando cautelas quanto à forma de integração dos agentes privados nesse processo. Mas isso é outra história: a própria história da assimetria entre público e privado na produção e regulação do espaço urbano. O que nos leva de volta ao nosso ponto de partida: os cinco anos do Estatuto da Metrópole (e os quase vinte que o Estatuto da Cidade completará em 2020) são antes um convite à reflexão do que à pura e simples comemoração.

Referência

KLINK, J. Por que as regiões metropolitanas continuam tão ingovernáveis? Problematizando a reestruturação e o reescalonamento do estado socialdesenvolvimentista em espaços metropolitanos. In. FURTADO, B. A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K. C. B. de (Ed.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.

Para ler o artigo, acesse

HOSHINO, T. A. P. and MOURA, R. Politizando as escalas urbanas: jurisdição, território e governança no Estatuto da Metrópole. Cad. Metrop., v. 21, n. 45, p. 371-392, 2019. ISSN: 1517-2422 [viewed 14 August 2019]. DOI: 10.1590/2236-9996.2019-4501. Available from: http://ref.scielo.org/7fq5cd

Link externo

Cadernos Metrópole – CM: http://www.scielo.br/cm

Sobre Camila Rodrigues da Silva

Camila Rodrigues da Silva

Camila Rodrigues da Silva

Jornalista, assessora de comunicação do Cadernos Metrópole e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Demografia no IFCH-Unicamp, vinculada ao Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”.

 

 

 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SILVA, C. R. Por que é necessário criar instituições metropolitanas: entrevista com Thiago Hoshino e Rosa Moura trata do Estatuto da Metrópole [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/08/29/por-que-e-necessario-criar-instituicoes-metropolitanas-entrevista-com-tiago-hoshino-e-rosa-moura-trata-do-estatuto-da-metropole/

 

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