A psicanálise em movimento nos ponteiros da clínica, da teoria e da cultura

Natasha Mello Helsinger, Secretaria executiva do periódico Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (UFRJ), Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (vol. 23, no. 1) é composto por treze artigos originais que trazem uma discussão multifacetada da psicanálise. No primeiro eixo encontramos uma discussão o acerca do movimento e da experiência psicanalítica; uma análise histórica e epistemológica da psicanálise que evidencia como se deu a formulação de alguns de seus balizadores teóricos e clínicos. Além disso, há uma discussão sobre a relação entre a tradição psiquiátrica e a tradição psicanalítica, sobretudo, no que tange à psicoterapia institucional e à reforma psiquiátrica brasileira. Além disso, discute-se a questão da cura em psicanálise, como também, certas premissas que estão na base do próprio trabalho psicanalítico. O segundo eixo abarca uma vertente mais teórico-conceitual, na qual são trabalhados tanto conceitos psicanalíticos  — como gozo (LACAN, 1962-1963/2004), pulsão de morte (FREUD, 1920/1981) e terceiro analítico (OGDEN, 1994) — e de outros campos de saber, como os corpos abjetos de Judith Butler (1990/2017). O terceiro eixo engloba artigos cujo enfoque é a clínica psicanalítica, sobretudo, na contemporaneidade. Discute-se, dentre outros fenômenos, a perversão, a psicossomática, os transtornos alimentares, as relações simbióticas, questões sobre o feminino e a maternidade e as transmissões psíquicas transgeracionais.

O primeiro eixo é composto por cinco artigos. No trabalho “Guattari e a psicoterapia institucional”, Larissa D. Agostinho discute a psicose à luz da psicoterapia institucional, tanto no que concerne ao diagnóstico como ao tratamento. A autora evidencia como Oury e Faugeras (2013) relacionou a concepção de Tosquelles a respeito da psicose à psicanálise, delineando, assim, uma clínica multirreferencial, para, em seguida, extrair as contribuições de Guattari (1972) acerca da experiência clínica da psicoterapia institucional.

A saúde mental também é abordada no artigo “Reforma Psiquiátrica e lógica diagnóstica psicanalítica: discussões acerca de uma possível tecitura” cujo objeto de estudo central é a reforma psiquiátrica brasileira e suas interações com a clínica psicanalítica. Os autores Rodrigo A. N. Santos, Thales Fonseca e Fuad Kyrillos Neto defendem como a diagnóstica psicanalítica — que dá enfoque ao sujeito — se alinha a uma “crítica da ideologia” da reforma psiquiátrica, na medida em que ambas colocam em questão o discurso hegemônico tão presente nos manicômios. Para concluir, buscam evidenciar a singularidade do dispositivo psicanalítico, mostrando como a escuta dá lugar ao reconhecimento da diferença e à desalienação.

Em “O universalismo da cura em Freud”, Tiago I. Neves problematiza a questão da cura em psicanálise, a fim de evidenciar como seu próprio surgimento — que se deu entre a tradição clínica e a psicoterápica — pressupôs a questão da cura. A partir disso, o autor busca sustentar que a prática psicanalítica deve ser entendida como uma experiência de cura, sendo esta entendida através da singularidade, escapando, assim, de qualquer totalidade. O trabalho de análise também é tematizado no artigo “A leitura do sintoma em Freud e em Lacan: ato psicanalítico, interpretação, construções”, no qual Denise Maria Lopes Dal-Cól discute a psicanálise como função e ética do analista. Para tanto, a autora elege três eixos fundamentais da análise, a saber, o ato psicanalítico (como condição da transferência), a interpretação (na leitura da escrita do sintoma) e as construções (como possibilidade de reescrita da história pulsional do sujeito).

No artigo intitulado “Contribuições de René Kaës para a epistemologia da psicanálise”, Fernando da Silveira, Maria Inês A. Fernandes e Georges Gaillard discutem a resistência que se ergueu, desde os primórdios da psicanálise, em relação aos grupos como campo e objeto teórico da psicanálise. Para tanto, se pautam na metodologia de René Kaës (2015) para analisar 55 textos publicados, entre 1967 e 1976, na Revista Brasileira de Psicanálise.

Em seguida, três artigos empreendem uma discussão de cunho fundamentalmente teórico, abarcando aspectos conceituais da psicanálise. No artigo intitulado “Gozo e pulsão de morte no ensino de Lacan”, Bruno Vicent discute a noção de gozo (LACAN, 1962-1963/2004) e sua articulação com o conceito de pulsão de morte, buscando evidenciar como a interação entre eles foi se tornando cada vez mais efetiva na obra de Jacques Lacan, o que difere do momento inicial em que a noção de gozo foi enunciada, junto de uma crítica à pulsão de morte como conceito.

Marina F. Ribeiro trabalha a passagem do conceito de identificação projetiva (KLEIN) para o conceito de terceiro analítico (OGDEN, 1994). Para tanto, seu artigo “Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor”, trabalha as contribuições de Thomas Ogden, incluindo suas análises a respeito de conceitos de Winnicott e Bion.

Em “Transfobia e abjeção: diálogos possíveis entre a psicanálise e a teoria Queer”, Amanda K. de O. Ribeiro e Lia C. Silveira empreendem um diálogo teórico entre a psicanálise e a teoria queer, a fim de sustentar que a transfobia é um fenômeno de segregação. Para tanto, articulam o conceito de corpos abjetos de Judith Butler (1990/2017) com as formulações psicanalíticas sobre a constituição do sujeito e a teoria da sexuação.

Um terceiro eixo temático engloba cinco artigos que têm a clínica psicanalítica como enfoque. No artigo “‘Na areia da carne’: por uma clínica psicanalítica dos fenômenos psicossomáticos”, Manuela Lanius discute os fenômenos psicossomáticos sendo eles entendidos como uma modalidade de escrita direta no corpo. Nesse sentido, os diferencia dos sintomas, na medida em que estes são formações dos inconscientes, abarcando, assim, uma dimensão metafórica que não se faz presente nos fenômenos psicossomáticos.

Em “Ilusão simbiótica e construção da identidade feminina nos transtornos alimentares: perspectiva da psicossomática psicanalítica”, Carolina Leonidas e Manoel A. dos Santos discutem, a partir da psicossomática psicanalítica, como a ilusão simbiótica mãe-filha (na qual a figura do pai não pôde operar uma interdição) incide na construção da identidade feminina em mulheres que apresentam transtornos alimentares.

A temática do feminino também é abordada no artigo “A disjunção mãe/mulher a partir de uma prática de conversação”, onde Cristina M. Marcos e Renata L. Mendonça analisam a atualidade da hipótese de Freud (1933/1989) de que a assunção da feminilidade se dá na experiência da maternidade — em que o filho equivale a uma assunção fálica — e da formulação de Lacan (1956-1955/1995) de que o feminino não se restringe ao ser mãe, a partir de uma prática de conversação com mães adolescentes gestantes.

No artigo “Transmissão psíquica geracional vinculada com as dimensões de repetição e transformação”, Camilla V. G. Pereira e Maria Carolina Andrade de Freitas discutem as atuais configurações familiares para pensar como o desejo de família se associa à transmissão psíquica transgeracional.

Partindo do conceito de transmissão (FREUD, 1921/1996), as autoras trabalham a dimensão inconsciente da transmissão a partir da repetição, sublinhando como a recepção desses conteúdos é passível de ser transformada e recriada de maneira singular pelo sujeito.

Por fim, o artigo “‘A professora de piano’ e a questão da perversão”, partindo da teoria de Freud sobre o fetichismo e das formulações de Lacan sobre a perversão, Álvaro D. R. Gómez analisa o filme “A professora de piano”, de Haneke (2001), para problematizar a suplência perversa na psicose. O autor ainda levanta algumas questões sobre a estrutura clínica da perversão em contraste com a neurose e a psicose.

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

FREUD, S. Au-delà du principe de plaisir (1920). In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981.

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: FREUD, S. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).

FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Conf. XXXIII Feminilidade (1933). Rio de Janeiro: Imago, 1989. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).

GUATTARI, F. Psychanalyse et transversalité. Paris: Maspero, 1972.

HANEKE, M. Película “La profesora de piano” (Filme, baseado na novela “La Pianiste” de JELINEK, E. (1983), 2001.

KAËS, R. L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod, 2015.

LACAN, J. A relação de objeto (1956-1955). Rio de Janeiro: Zahar, 1995. (O seminário, 4).

LACAN, J.  L’angoisse (1962-1963). Paris: Seuil, 2004.

OGDEN, T. H. Subjects of analysis. New York: Jason Aronson, 1994.

OURY, J.; FAUGERAS, P. Préalables à toute clinique des psychoses. Paris: Ères, 2013.

Para ler os artigos, acesse

Ágora (Rio J.) vol.23 no.1 Rio de Janeiro enero/abr. 2020

Links externos

Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica – AGORA: www.scielo.br/agora

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

HELSINGER, N. M. A psicanálise em movimento nos ponteiros da clínica, da teoria e da cultura [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2020 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2020/04/29/a-psicanalise-em-movimento-nos-ponteiros-da-clinica-da-teoria-e-da-cultura/

 

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