Cláudia Vianna, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Alexandre Bortolini, Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Em 2014 o uso da palavra gênero foi motivo de polêmica entre progressistas e conservadores durante a votação do Plano Nacional de Educação (PNE). De um lado, ativistas LGBT e feministas defendiam um texto em que fosse explicitado o combate às desigualdades de gênero e orientação sexual. Do outro, religiosos diziam combater a “ideologia de gênero” em defesa da família. Venceram os conservadores, o PNE foi aprovado com uma referência genérica indicando a promoção da cidadania e o enfrentamento a “todas as formas de discriminação”. Essa disputa se repetiria por todo o país nos anos seguintes, quando foram votados os planos estaduais, distrital e municipais de educação e ativistas anti e pró gênero se reencontraram nas assembleias e câmaras legislativas. O resultado final é mais complexo do que se imagina.
O artigo “Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estaduais de educação: tensões e disputas”, publicado no periódico Educação e Pesquisa (vol. 46), apresenta um mapa da inserção do gênero nos planos estaduais e distrital de educação promulgados entre 2014 e 2016. Os 25 Planos de Educação examinados não são homogêneos e foram agregados em quatro grupos representativos de suas principais proposições, ainda que mantidas suas contradições internas. O primeiro grupo diz respeito ao veto e é composto de apenas um estado, de todos os planos, apenas o Ceará vetou explicitamente o ensino daquilo que chama de “ideologia de gênero”. O segundo grupo, com três estados, é caracterizado pela omissão do termo gênero e de qualquer termo que pudesse ser a ele relacionado (GO, PE, SP). O terceiro agrupamento, com quatorze estados (AP, AC, AL, ES, DF, PB, PI, PR, RN, RO, RS, SC, SE, TO), é marcado pela incorporação parcial das questões de gênero, com referências aos direitos humanos, à garantia de alguns direitos das mulheres e à cultura da paz, mas de forma restrita, por vezes reiterando perspectivas binárias ou evocando a precedência da família sobre a escola. Em nenhum deles aparecem referências às demandas LGBT. O quarto grupo, com sete estados, opera com a explicitação das questões de gênero e da produção das sexualidades, tanto no que diz respeito à superação de desigualdades e promoção dos direitos das mulheres quanto ao reconhecimento, proteção e promoção de direitos das pessoas LGBT (AM, BA, MA, MT, MTS, PA, RR).
Assim, ainda que de formas bastante distintas, mais da metade dos planos inseriu questões relativas à agenda das mulheres e dos direitos humanos, sob uma perspectiva de gênero, revelando não uma polarização absoluta entre incluir ou vetar, mas a disputa entre pautas conflitantes, próprias da contestação de projetos díspares e até mesmo antagônicos sobre diferentes concepções de educação, de direito ao acesso e à permanência. Entretanto, a disputa evidencia também o avanço de pautas conservadoras com a exclusão do termo gênero, corte ou limitação da agenda LGBT e inserção de itens que submetem a abordagem destes temas na escola à concordância das famílias.
Os resultados mostram que o avanço conservador antigênero, ao menos no momento examinado, contrapõe-se à manutenção de várias conquistas. Permanecem, portanto, as contradições nas disputas de poder pela contribuição dos significados de gênero na função social da educação. A disputa marca, do ponto de vista histórico, o caráter processual da introdução do gênero nas políticas públicas de educação. Processo inconcluso, necessariamente em aberto, permeável às diferentes concepções de educação, de direito ao acesso, à permanência, ao conteúdo específico com profissionais qualificados para tal.
Mesmo nos planos em que a palavra gênero foi retirada, a escola segue, por obrigação constitucional e por força de todas as diretrizes e normas educacionais vigentes, voltada para o combate de qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Além disso, onde se tentou proibir o ensino destes temas, a justiça considerou inconstitucional qualquer forma de censura e manteve garantidas tanto a liberdade de ensinar de professoras e professores, quanto a liberdade de aprender das e dos estudantes. Essa é apenas uma face da história que estamos por escrever, não existe um único projeto de educação e, sim, acirrada disputa. Trata-se de um cenário que exige a percepção das fissuras e das tensões, porque elas são muito importantes para a luta por manutenção de direitos.
Referências
VIANNA, C. Políticas de educação, gênero e diversidade sexual: breve história de lutas, danos e resistências. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Para ler o artigo, acesse
VIANNA, C. and BORTOLINI, A. Anti-gender discourse and LGBT and feminist agendas in state-level education plans: tensions and disputes. Educ. Pesqui. [online]. 2020, vol. 46, e221756, ISSN: 1678-4634 [viewed 30 September 2020]. DOI: 10.1590/s1678-4634202046221756. Available from: http://ref.scielo.org/3jk9nq
Link externo
Educação e Pesquisa – EP: www.scielo.br/ep
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