Uso do tempo e insegurança alimentar em domicílios chefiados por mulheres no Brasil

Cicero Augusto Silveira Braga, Doutor em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil.

Lorena Vieira Costa, Doutora em Economia Aplicada e Professora da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil.

rbepop_logoSegundo o Relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (IBGE, 2014), a Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN) é predominante nos domicílios chefiados por mulheres em todas as regiões do país. A publicação Uso do tempo e insegurança alimentar em domicílios chefiados por mulheres no Brasil mostrou que esta relação se intensifica ainda mais nos casos em que a insegurança alimentar é considerada grave ou moderada. Este resultado se mantém mesmo quando diferentes medidas de IAN são utilizadas: é notória a prevalência da vulnerabilidade dos domicílios chefiados por mulheres quando a IAN é mensurada por medidas antropométricas, como o Índice de Massa Corporal (IMC), nível de subnutrição ou ingestão insuficiente de calorias.

Esta relação é, entretanto, paradoxal. Diferentes modelos teóricos quanto ao comportamento familiar – notadamente modelos coletivos – assim como diversas evidências empíricas, têm apontado que as mulheres tendem a melhor alocar os recursos no que concerne à alimentação, saúde e questões relacionadas ao desenvolvimento domiciliar em geral (DUFLO, 2012). Subjacente ao paradoxo gênero e bem-estar estão diversas características que tornam os domicílios chefiados por mulheres fundamentalmente diferentes daqueles onde os homens são declarados como a pessoa de referência. As mulheres chefes tenderiam a alocar os recursos de forma mais benéfica ao bem-estar familiar caso tivessem, assim como os homens chefes, uma estrutura familiar que as apoie e oportunidades de empregos melhores para que auferissem rendas similares a eles.

Esta ideia encontra respaldo na discussão quanto aos fatores que levam à feminização da pobreza, que traz à tona, entre outros fatores, a composição familiar dos domicílios chefiados por mulheres e suas particularidades. Dentre outros aspectos, é apontado que a desvantagem relativa das mulheres em termos de pobreza deve-se ao fato dessas terem, muitas vezes, de assumir jornadas duplas de trabalho, ou seja, são responsáveis pelo trabalho remunerado e não remunerado.

Com o intuito de contribuir com este debate, o artigo pretendeu ir além da verificação da situação relativa da mulher frente à insegurança alimentar domiciliar. Buscou-se verificar quais as características dos domicílios chefiados por elas são responsáveis por elevar a probabilidade de insegurança. A discussão fornecida pelos modelos teóricos coletivos e pela teoria da feminização da pobreza sugerem que a composição familiar e a divisão intradomiciliar de recursos (assim como de tarefas quanto ao trabalho doméstico) são importantes. Assim, o trabalhou-se com a hipótese de que mulheres chefes de domicílio se encontram em situação vulnerável quanto à Insegurança Alimentar, em parte, devido à necessidade de realizarem jornadas duplas e à ausência de cônjuges com quem dividirem tarefas domésticas (como resultado da própria ausência do cônjuge ou da divisão desigual do trabalho não remunerado).

A revisão de literatura apresentada no artigo aponta algumas tendências entre a relação de gênero e insegurança alimentar. Primeiramente, deve-se destacar que este fenômeno conjunto é pujante sobretudo em países em desenvolvimento, em que não só a vulnerabilidade alimentar, como também o acúmulo de tarefas pelas mulheres é mais recorrente – este último sobretudo devido a estruturas patriarcais emaranhadas no imaginário cultural coletivo. Segundo, vê-se como a própria limitação da disponibilidade de dados reforça o cenário de vulnerabilidade, dado que os canais pelos quais poderiam ser expostos estes problemas estão sistematicamente notificados.

Imagem: Pixabay

Com isso em mente, o trabalho valeu-se da Escala Brasileira de Segurança Alimentar, pesquisa brasileira realizada pelo IBGE no ano de 2014, que classifica os domicílios brasileiros como em estado de segurança ou insegurança alimentar leve, moderada ou greve. Os resultados foram explorados a partir de um modelo probabilístico que considerou diferentes cenários: um em que a mulher chefe de domicílio realizada jornada dupla de trabalho, outro em que as tarefas domésticas eram divididas com alguém do domicílio e outro em que esta divisão era diretamente com o cônjuge do sexo oposto.

De fato, notou-se que os domicílios chefiados por mulheres apresentaram as maiores incidências de insegurança alimentar em todas as classificações (grave (4%), moderada (5%) e leve (16%) se comparado com aqueles chefiados por homens (respectivamente 3%, 4% e 13%). Enquanto 79% dos domicílios chefiados por homens estavam em segurança alimentar, 74% dos chefiados por mulheres estavam nesta posição. Dos domicílios chefiados por mulheres, aproximadamente 40% eram monoparentais, ou seja, são compostos por mãe e filhos. 44% das chefes de domicílios realizavam jornada dupla (contra 25% dos homens de referência) e em apenas 13.62% os afazeres domésticos eram realizados pelo cônjuge homem.

Os efeitos do modelo empírico foram analisados em algumas etapas. Primeiro, isoladamente, a chefia domiciliar feminina estava associada a uma maior chance de observar insegurança alimentar grave. Ao inserir no modelo as jornadas duplas, este efeito é ligeiramente reduzido, confirmando que a vulnerabilidade domiciliar não se deve ao fato de a chefe ser mulher, mas sim os efeitos associados a ele. Há, ainda, uma redução substancial do efeito isolado de gênero ao incluir no modelo a divisão das tarefas domésticas com outro membro. Por fim, vê-se que, dividir as tarefas domésticas com o cônjuge faz com que o efeito mude de direção.

Estes resultados mostram a importância das atividades e afazeres domésticos para produção do bem-estar domiciliar. O empoderamento feminino não deve se limitar à inserção das mulheres no mercado de trabalho, mas principalmente nas divisões de tarefas e responsabilidades que sejam independentes do gênero. Para que elas exerçam suas atividades laborais sem que este fato reduza o bem-estar domiciliar (ou para impedir que esta seja uma justificativa que as afaste de desenvolverem seus potenciais), as famílias precisam se responsabilizar de maneira igualitária pelo bem-estar de seus membros. Desta forma, a análise do gênero sob uma ótica econômica que entenda, de fato, as configurações de trabalho e do domicílio, podem ajudar a reduzir o gap de gênero observado especialmente nos países em desenvolvimento.

Se a divisão de tarefas importa, abre-se ainda um amplo espaço para discussão de ações que aliviem a situação de vulnerabilidade quanto à IA das mulheres monoparentais. É importante que elas tenham um ambiente adequado para o cuidado de seus filhos para que, de fato, tenham condições de se desenvolverem e atingirem melhores prospecções de trabalho no mercado formal.

Leia mais

CARTER, M.R. and KATZ, E.G. Separete Spheres and the Conjugal Contrat: Understanding the Impact of Gender-Biased Development. In: HADDAD, L.J., HODDINOTT, J.F. and ALDERMAN, H. (ed). Intrahousehold Resource Allocation in Developing Countries. 1. ed. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1997.

DUFLO, E. Women Empowerment and Economic Development. Journal of Economic Literature [online]. 2012, vol. 50, no. 4, pp. 1051–1079 [viewed 8 June 2022]. https://doi.org/10.1257/jel.50.4.1051. Available from: https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/jel.50.4.1051

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HADLEY, C. et al. Gender bias in the food insecurity experience of Ethiopian adolescents. Social Science & Medicine [online]. 2008, v. 66, no. 2, pp. 427–438 [viewed 8 June 2022]. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2007.08.025. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0277953607004856?via%3Dihub

HIRATA, H. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu [online]. 2002, vol. 17, pp. 139–156 [viewed 8 June 2022]. https://doi.org/10.1590/s0104-83332002000100006. Available from: https://www.scielo.br/j/cpa/a/PcsfvS6CPpgQRZLRmdTzgxL/

HOFFMANN, R. Determinantes da Insegurança Alimentar no Brasil: Análise dos Dados da PNAD de 2004. Segurança Alimentar e Nutricional [online]. 2008, vol. 15, no. 1, pp. 49–61 [viewed 8 June 2022]. https://doi.org/10.20396/san.v20i2.8634599. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/8634599

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): segurança alimentar – 2013. [s.l: s.n.]. v. 39. Rio de Janeiro: IBGE, 2014.

PINHEIRO, L. S. and MEDEIROS, M. Desigualdades de gênero em tempo de trabalho pago e não pago no Brasil, 2013. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2016.

Para ler o artigo, acesse

BRAGA, C.A.S. and COSTA, L.V. Time use and food insecurity in female-headed households in Brazil. Revista Brasileira de Estudos de População [online]. 2022, vol. 39 [viewed 8 June 2022]. https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0200 Available from: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/PBqD6RXp6HFzs5nGkRvQ7Rq/

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Cicero Augusto Silveira Braga: https://orcid.org/0000-0002-7035-4926

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

BRAGA, C.A.S. and COSTA, L.V. Uso do tempo e insegurança alimentar em domicílios chefiados por mulheres no Brasil [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2022 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2022/06/09/uso-do-tempo-e-inseguranca-alimentar-em-domicilios-chefiados-por-mulheres-no-brasil/

 

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